"Brasil, um país doador": comentários sobre uma matéria

Mês passado, minha querida amiga Amanda Rossi publicou uma matéria no Le Monde Diplomatique intitulada "Brasil, um país doador", na qual demonstrou, com base num cruzamento de dados realizado pelo Le Monde, que nosso país já fornece mais do que recebe ajuda internacional entre governos e agências multilaterais.

Conforme reporta a jornalista, "entre 2005 e 2009, o Brasil recebeu US$ 1,48 bilhão. No mesmo período, doou US$ 1,88 bilhão - uma diferença de US$ 400 milhões em relação ao que recebeu".

"Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty)"

A matéria destaca como o Brasil da "Era Lula" aproveitou sua relativa posição privilegiada no cenário político (postura neutra e não-intervencionista) e econômico (valendo-se de seu status de ser um dos principais membros do BRICS) para aumentar os investimentos nas relações exteriores através de acordos internacionais, especialmente os de cooperação técnica no cone Sul-Sul.

Obviamente, há interesse econômico por parte do Brasil (afinal nunca uma ajuda técnica ou financeira é a troco de nada - e os brasileiros sabem bem dessa velha máxima). O país vem colhendo frutos econômicos do aumento das doações internacionais, além de maior prestígio político perante os órgãos financeiros ocidentais como o Fundo Monetário Internacional - o qual o Brasil já clama maior participação (cf. 'FMI e Brasil: do ódio ao amor') - e o Banco Mundial.

Seria um novo Brasil em termos internacionais? Impossível não lembrar de Caetano Veloso cantando a genial Língua ("Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas! Cadê?").

Mas a situação não é assim tão grave. O Brasil não quer repetir a mesma postura impositiva utilizada pelas potências do hemisfério norte ao realizar empréstimos e doações. Para Rossi, essa nova fase - a do país como doador e não mais donatário - é marcada por um novo estilo: "O Brasil está moldando uma cara própria para sua cooperação e se diferenciando de outros modelos já existentes, principalmente dos de países doadores da OCDE. Chamados de doares tradicionais, eles são focados em prover recursos financeiros (não cooperação técnica) em troca do cumprimento de condições políticas e econômicas. (...) Com essas características, o Brasil estaria inaugurando um novo modelo de ajuda internacional? 'Não sei se chamaria de novo modelo, porque não foi pensado como novo modelo', diz o embaixador Tarragô. Mas 'nós temos uma maneira de fazer que não tenha as mesmas condicionalidades ou exigências. Porque a ênfase não é na doação de recursos financeiros', ma na cooperação técnica".

Ainda na condição de expectador confuso, me arrisco a afirmar que estamos vivendo um momento de transição interessante e único na história (o que seria uma obviedade se você assumir que todo momento histórico é transitório e singular). O "mito do desenvolvimento" (parafraseando Celso Furtado) foi superado. Agora, o Brasil passa a olhar para o hemisfério Sul em busca de cooperação e aprendizado. Ao mesmo tempo, o mundo, ou pelos os países em deflagrada crise, passa a observar com atenção a dinâmica político-econômica brasileira com a esperança de extrair alguma teoria capaz de explicar a relativa estabilidade do país em momentos de crise financeira global. Aparentemente, o Brasil é a bola da vez.

Não é de surpreender que o país assuma a postura de doador e potencial líder global. Sim, ainda falta muito. Os problemas de governança (corrupção) e desigualdade social são tremendos e não podem ser esquecidos em razão de um "pseudo-milagre econômico". Mas pequenos acontecimentos - os quais raramente são analisamos em conjunto - começam a sinalizar uma ruptura com a geopolítica do século XX, tal como aprendemos nos livros.

Nessa década que se inicia (2011-2020), muita coisa pode acontecer em termos de reestruturação do poder global. Trata-se de mais um daqueles momentos decisivos no qual os cálculos probabilísticos são colocados em xeque ou mesmo descartados. John Maynard Keynes - tão em moda na economia atualmente (muito em razão de Gregory Mankiw) - diria, com sua genialidade ácida: "O passado é irrevogável e o futuro é incerto".

Sim, o futuro é incerto. Todavia, de acordo com dados trazidos pela matéria da Amanda e conforme uma superficial análise da situação econômica e política contemporânea, pode-se afirmar que o Brasil está assumindo uma nova postura, talvez a de condutor de um novo modelo de desenvolvimento, ainda não decifrado.

Enquanto a utópica liderança não acontece, o governo Dilma Rousseff continua a por em prática a recente política externa de doação. Prova disso é que ontem (31/05) foi aprovada a Lei nº. 12.413, que autoriza a República Federativa do Brasil a efetuar doações a iniciativas internacionais de auxílio ao desenvolvimento.

O artigo primeiro (dos quatro presentes na Lei), diz: "É o Poder Executivo autorizado a efetuar doação à Aliança Global para Vacinas e Imunização (Global Alliance for Vaccines and Immunization - Gavi), no valor de US$ 20.000.000,00 (vinte milhões de dólares norte-americanos), distribuídos em parcelas iguais e subsequentes ao longo de 20 (vinte) anos, com o objetivo de alimentar a plataforma financeira Mecanismo de Financiamento Internacional para Imunização (IFFIm), a qual financiará ações de vacinação e imunização em países de baixa renda". 

O artigo segundo estipula um plano de doação por tempo indeterminado na proporção de dois dólares por passageiro brasileiro que embarque para o exterior: "É o Poder Executivo autorizado a efetuar doação anual, por tempo indeterminado, à Central Internacional para Compra de Medicamentos (UNITAID), na proporção de US$ 2,00 (dois dólares norte-americanos) por passageiro que embarque, em aeronave, no território brasileiro com destino ao exterior, à exceção dos passageiros em trânsito pelo País".

Nesse caso, a "cara própria" das doações brasileiras, voltadas a prover cooperação técnica e recursos humanos, não se faz presente. Trata-se de grana em troca de influência e poder.

Um comentário:

  1. A anormalidade apontada por mim nesse texto (de que o repasse de recurso financeiro difere do padrão de cooperação técnica geralmente utilizado pelo Brasil) foi logo rebatida pela própria Amanda.

    Eis sua interpretação: A ajuda financeira que não é característica do modelo brasileiro de "apoio ao desenvolvimento", como é chamado, se trata de repasse de recursos entre países. Por exemplo, o fornecimento pelo Brasil de dinheiro (emprestado ou não) para Moçambique. Agora a transferência de recursos para organizações internacionais, por exemplo, órgãos da ONU ou entidades em que o Brasil tem cota, é algo normal. Por isso, a lei que você cita que foi assinada pela Dilma hoje (e já estava tramitando ano passado) não foge do padrão.

    Nesse sentido, a Lei estaria no padrão, pois repassa recurso a uma instituição e não a um país específico.

    De fato, minha avaliação pecou por não prestar atenção a este detalhe (o receptor).

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