Ontem publiquei um breve texto sobre a posse de Luiz Fux no Supremo Tribunal Federal e comentei que sua função será a de decidir casos complexos que envolvam matérias constitucionais, certo? Pois lá vem batata-quente.
Há quatro dias (28/02) foi publicada no Diário Oficial a Lei nº. 12.382/2011 que, além de fixar o salário mínimo no valor de R$ 545,00, traz, em seu texto normativo, dois artigos polêmicos que estão sendo questionados através da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4.568, protocolada terça-feira no Supremo Tribunal Federal.
Eis o teor dos artigos 2º e 3º da referida lei: "Art. 2º. Ficam estabelecidas as diretrizes para a política de valorização do salário mínimo a vigorar entre 2012 e 2015, inclusive, a serem aplicadas em 1º de janeiro do respectivo ano. § 1º. Os reajustes para a preservação do poder aquisitivo do salário mínimo corresponderão à variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor – INPC, calculado e divulgado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, acumulada nos doze meses anteriores ao mês do reajuste. § 2º. Na hipótese de não divulgação do INPC referente a um ou mais meses compreendidos no período do cálculo até o último dia útil imediatamente anterior à vigência do reajuste, o Poder Executivo estimará os índices dos meses não disponíveis. § 3º. Verificada a hipótese de que trata o § 2º, os índices estimados permanecerão válidos para os fins desta Lei, sem qualquer revisão, sendo os eventuais resíduos compensados no reajuste subsequente, sem retroatividade. § 4º. A título de aumento real, serão aplicados os seguintes percentuais: I – em 2012, será aplicado o percentual equivalente à taxa de crescimento real do Produto Interno Bruto – PIB, apurada pelo IBGE, para o ano de 2010; II – em 2013, será aplicado o percentual equivalente à taxa de crescimento real do PIB, apurada pelo IBGE, para o ano de 2011; III – em 2014, será aplicado o percentual equivalente à taxa de crescimento real do PIB, apurada pelo IBGE, para o ano de 2012; e IV – em 2015, será aplicado o percentual equivalente à taxa de crescimento real do PIB, apurada pelo IBGE, para o ano de 2013. § 5º. Para fins do disposto no § 4º, será utilizada a taxa de crescimento real do PIB para o ano de referência, divulgada pelo IBGE até o último dia útil do ano imediatamente anterior ao de aplicação do respectivo aumento real.
Art. 3º. Os reajustes e aumentos fixados na forma do art. 2º serão estabelecidos pelo Poder Executivo, por meio de decreto, nos termos desta Lei".
Ou seja, a Lei diz que o salário mínimo será reajustado através de decreto do Poder Executivo, tomando por base índices oficiais que avaliam a capacidade de consumo e a taxa de crescimento real do PIB. Parece coerente, certo?
Pode até ser coerente, mas tal previsão legal contraria a Constituição Federal (a "lei maior" do Brasil). É isso que argumentam os Partidos Popular Socialista (PPS), Social Democracia Brasileira (PSDB) e Democratas (DEM), que ajuizaram a ADI.
A síntese dos pedidos foi divulgada no site oficial do STF: "Os partidos argumentam que a disposição normativa é inconstitucional por ofender “claramente o disposto no art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal”, que determina que o salário mínimo seja fixado em lei. “Lei em sentido formal”, sustentam na inicial. Para as agremiações, o artigo questionado na ação “se mostra incompatível com a reserva legal estabelecida no inciso IV do art. 7º da Lei Maior”. Lembram também que a norma, ao delegar o estabelecimento do valor do salário mínimo por decreto, entre os anos de 2012 e 2015, o faz com exclusividade, sendo que “o Congresso Nacional não poderá se manifestar sobre o valor do salário” nesse período. Sustentam, ainda, que apesar da delegação de poderes para a edição do decreto encontrar limites no artigo 2º da mesma norma, “tais como prazos e índices de reajuste”, é “manifesta a inconstitucionalidade” do artigo questionado. Afirmam que afastar do Congresso Nacional a discussão sobre o valor do salário mínimo “não faz nenhum sentido do ponto de vista jurídico nem mesmo do ponto de vista político”, pois o Poder Legislativo é “o espaço legítimo e democrático para o debate político acerca do valor do salário mínimo e seus reajustes periódicos”, que não se resume aos critérios técnicos e econômicos. Citam jurisprudência do Supremo firmada no julgamento da ADI 1442, relator ministro Celso de Mello, e na ADI 2585, relatora ministra Ellen Gracie. Pedem a concessão de liminar para suspender os efeitos do artigo 3º e seu parágrafo único e, ao final, a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo".
Realmente, o caso é conflitante. A Constituição Federal reza expressamente que: "Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…) IV – salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim";
A questão aqui é, como sempre, de argumentação e justificação. Estaria o salário mínimo já fixado através da Lei 12.282 até 2015? O reajuste através de decreto poderia ser considerado uma nova fixação do salário mínimo (sendo, portanto, inconstitucional por ferir o art. 7º) ou seria apenas um ato vinculado que já respeita lei prévia?
O despacho da Advocacia Geral da União entende que não há discricionaridade por parte do Executivo, considerando que há autorização expressa por parte do Legislativo: "3. A matéria foi exaustivamente discutida no Congresso Nacional. O salário mínimo é fixado por lei, como aqui se evidencia, prevendo-se reajustes e aumentos por parte do Poder Executivo. Não há inovação ou invasão de competência, por parte do Executivo, em matéria ordinariamente reservada ao Legislativo. Este último fixa os valores, por lei, e aquele primeiro dá continuidade à aludida fixação, mediante cálculo de reajustes e aumentos. O regulamento apenas cuida do fiel cumprimento da lei. Trata-se de mera recomposição de referências e de expressão, a partir da fixação por lei, núcleo do projeto de que se cuida. Em outras palavras, a lei fixa os critérios que serão utilizados pelos decretos supervenientes, em matéria de salário mínimo. Bem entendido, não haverá por parte do Executivo o exercício de qualquer fórmula de discricionariedade. É que a lei já determina os critérios que serão eventualmente utilizados, no que se refere aos cálculos que deverão ser feitos".
O argumento contrário (manifestado na ADI) é que "o que se verifica na espécia nada mais é do que uma indisfarçada delegação de poderes à Excelentíssima Senhoara Presidente da República, para que possa o Poder Executivo deter a prerrogativa de fixar, com exclusividade, o valor do salário mínimo. Por via de consequência, o Congresso Nacional não poderá se manifestar sobre o valor de salário mínimo entre os anos de 2012 e 2015. Tal delegação contrasta a mais não poder com a mais elementar concepção de separação dos Poderes, pois aqui se trata de matéria reservada exclusivamente à lei. A disposição constitucional exige que a lei "fixe" o valor do salário mínimo. E "fixar" é, sem dúvida, definir todos os elementos que compõem certo conceito ou valor. A mera designação geral de critério, para o futuro, para posterior determinação do valor em ato normativo infralegal não atende aos requisitos constitucionais estabelecidos".
Eis a questão. Fixar a lei é declarar seu valor nominal (R$ 545,00) ou declarar sua forma de cálculo (R$ 545,00 mais variação do INPC e taxa de crescimento real do PIB)?
O site PensandoDireito formulou cinco questões para se pensar a inconstitucionalidade e funcionalidade da referida norma: (i) “Fixado em lei” implica fixação nominal por lei ou basta que uma lei estabeleça a fórmula de cálculo? (ii) Qual a vantagem ou o interesse protegido pela Constituição ao requerer que salário mínimo seja fixado em lei? (iii) O Congresso Nacional, uma vez sancionada e publicada a Lei 12.382/11, pode editar nova lei alterando a regra do jogo, ou simplesmente estabelecendo novo salário mínimo? (iv) Caso o Presidente da República se omita na edição do Decreto anual, pode o cidadão exigir judicialmente o cumprimento da Lei (ou seja, essa fórmula aprovada gera direito subjetivo individual?)? (v) Caso possa exigir o cumprimento da Lei, de quem deverá exigir? Por qual via?
Estaria o Poder Executivo rompendo a harmonia entre os Poderes da União ao assumir uma atribuição que seria própria do Poder Legislativo? O art. 3º é conflitante com a "Constituição Cidadã"?
Os ministros do Supremo Tribunal Federal julgarão a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4.568 e decidirão se a norma é ou não inconstitucional. Algum palpite de como será o desfecho dessa história?
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