Estive ausente, sim. Porém, existem motivos. Estive em Curitiba entre os dias 19 (quarta-feira) e 23 (domingo), por motivos acadêmicos.
Não que tenha ido para algum processo seletivo de Mestrado na UFPR ou algo assim. Fui para Curitiba exclusivamente para participar do IX Simpósio Nacional de Direito Constitucional que ocorreu no Teatro Guaíra.
E, amigos, fiquei impressionado com a grandeza do evento. Teatro lotado, centenas de pessoas (mais de mil, com certeza), palestrantes de renome, lançamento de livros, pessoas bem trajadas, convidados internacionais. Foi algo grande. Talvez, o mais importante simpósio que a Academia Brasileira de Direito Constitucional já realizou.
Curitiba estava mais europeia do que nunca, com as temperaturas sempre por volta dos dez graus. Cachecol, tão desprezado em terras maringaenses, é elemento essencial na capital do Paraná. Quem não usa, sofre.
O Congresso começou na quinta-feira e teve como tema da palestra de abertura Humanismo Jurídico: base do novo constitucionalismo, dada pelo Prof. Dalmo de Abreu Dallari (USP). A palestra foi uma impressionante aula que sintetizou a história moderna e contemporânea em menos uma hora, expondo como ocorreu a consolidação dos ideais burgueses, a revolução francesa, a revolução americana, a guerra civil americana, as duas guerras e a declaração dos direitos humanos no pós-guerra. Dallari é uma figura ímpar e um pesquisador que vai à fonte. Visitou as principais bibliotecas nacionais do mundo para poder formar seu ponto de vista sobre o humanismo jurídico.
Fiquei impressionado não só com Dallari, mas também com o número de pessoas dormindo e brincando com o celular durante a fala do mestre do Largo São Francisco. Não o que alguns estavam fazendo lá, mas isso não é discussão para agora.
Depois, veio a brilhante conferência sobre Garantismo e Constitucionalismo Contemporâneo, ministrada por Lênio Luiz Streck com o enfoque em "A resposta hermenêutica ao pan-principiologismo em terrae brasilis". O gaúcho criticou a onda de "princípios" que assola o Judiciário brasileiro, justificando qualquer decisão. Ele mesmo listou mais de 100 princípios utilizados pelas instâncias superiores no país e teceu fortes críticas ao principiologismo que justifica qualquer razão de decidir.
Para se ter uma noção de Streck, vide a Aula Magna que ele proferiu no Supremo Tribunal Federal sobre Jurisdição Constitucional e Hermenêutica:
Ainda na manhã, dentro do tema sobre Garantismo e Constitucionalismo contemporâneo, foi a vez de Luigi Ferrajoli, professor de Teoria e Filosofia do Direito da Università Degli Studi Roma Tre (Itália), falar sobre sua teoria do garantismo constitucional.
Ferrajoli, além de tratar sobre o constitucionalismo garantista como completamento e reforço do positivismo jurídico, trouxe valiosas lições sobre princípios e regras, fazendo uma crítica à distinção entre ambos pela doutrina majoritária (Dworkin, Alexy e Zagrebelsky dizem que enquanto as regras se aplicam, os princípios se respeitam, se pesam, se ponderam). Para Luigi Ferrajoli: "Princípios e regras são, igualmente, normas, simplesmente formuladas de maneira diversa: uns com referência ao seu respeito; outros com referência à sua violação e à sua conseqüente aplicação. Prova disso é que mesmo as regras, inclusive aquelas penais às quais se exige a máxima taxatividade, quando são observadas exsurgem como princípios, que não se aplicam, mas se respeitam: por exemplo, a observância das normas sobre o homicídio ou sobre as lesões corporais ou sobre o furto equivale ao respeito aos princípios da vida, da igualdade corporal e da propriedade privada. Inversamente, também os princípios, quando são violados, aparecem como regras, que não se respeitam, mas se aplicam: por exemplo, o princípio constitucional da igualdade, quando é violado, surge como regra em relação à sua violação: a regra, precisamente, que proíbe as discriminações. E a discriminação é seguramente uma fattispecie da relativa proibição, cuja verificação não consiste com certeza numa ponderação, mas sim numa subsunção. Mesmo princípios vagos e imprecisos, como a dignidade da pessoa ou princípios penais da determinação ou da ofensividade, quando são violados por comportamentos lesivos da dignidade ou das leis penais que imputam como crimes fatos indeterminados ou inofensivos, aparecem como regras, cuja violação é nestas subsumida, não diversamente do que ocorre com qualquer ato ilícito ou inválido; e a possibilidade da subsunção não depende, nestes casos, da formulação das relativas normas em princípios, mas somente, como acontece também nas regras, do uso de expressões vagas e imprecisas como "dignidade", "determinação" e "ofensividade". A diferença entre princípios e regras é, portanto, a meu ver, uma diferença que não é estrutural, mas de estilo".
A palestra foi ministrada em italiano, mas de forma muito clara, calma e sem sotaques. Creio que até os que nunca estudaram a língua italiana (no meu caso, estudei por dois anos no ILG) conseguiram compreender tudo apenas ouvindo o mestre de Roma.
Na parte da tarde, tivemos conferências de doutrinadores importantes como Fredie Didier Jr e Jacinsto Nelson de Miranda Coutinho (professor titular da UFPR e dublê do Marlon Brando em O Poderoso Chefão).
Na manhã do dia 21, discutiram sobre o tema Democracia e Inclusão em Sociedades Complexas os professores Arnaldo Miglino, Luiz Alberto David Araújo (PUC-SP) e Piergiorgio Odifreddi (Universidade de Turim-Itália). Entretanto, eu ainda estava dormindo e perdi essa rica discussão.
Voltei a tarde e assisti à 7ª Conferência do Simpósio, sobre Direito Concorrencial como Mecanismo de Desenvolvimento. A respeito do tema (bastante discutido atualmente na academia brasileira), falaram Fábio Nusdeo (Prof. aposentado da USP), João Bosco da Fonseca (UFMG) e Marçal Justen Filho (PUC-SP).
Gostei dos três, mas infelizmente a discussão ficou num nível muito raso. Acredito que os palestrantes tenham sido extremamente cautelosos para introduzir o tema aos acadêmicos e advogados que não estudaram direito concorrencial, o que acabou por tomar muito tempo nas três palestras (que já eram curtas), impossibilitando alguma discussão mais profunda sobre o tema.
Marçal Justen Filho tratou dos direitos fundamentais e a atuação direta do Estado, colocando a questão da miséria como justificadora do asistencialismo, desde que executada com outras ações conjuntas que possibilitem alguma mudança na estrutura da produção social capitalista. Colocou também a razão instrumental do direito para promoção do desenvolvimento: "não há possibilidade de desenvolvimento sem o controle da concorrência e do mercado, com o estímulo da livre concorrência e da lealdade dos agentes econômicos".
A lealdade dos agentes econômicos, aliás, foi outro ponto bem debatido. João da Fonseca relembrou os conceitos de Amartya Sen (Ética e Desenvolvimento) sobre a lealdade, como valor moral e econômico, enquanto que Marçal Justen Filho reforçou o caráter institucional da mercado: "o mercado é uma instituição onde há regras claras, regras do jogo, de origens históricas, de práticas reiteradas e expectativas de comportamentos através da racionalização de tais ações".
A ausência de regulação de mercado pelo Estado geraria consequências gravíssimas, sendo impossível conceber o mercado sem regulações jurídicas e éticas. Além disso, a competição honesta leva à elevação da eficiência econômica. Ou seja, a determinação clara das regras do jogo (fator institucional) possibilita melhores resultados na ação racionalizada dos agentes econômicos.
Na oitava conferência, Francisco José Rodrigues Neto (UFSC), Cláudio Pereira Souza Neto (UFF) o jovem Alexandre de Morais da Rosa (UFSC) trataram O Judiciário e a Eficácia da Constituição. A fala de Alexandre de Morais, com certeza, foi a mais provocadora e instigante das três. O Juiz e Doutor pela Federal do Paraná utilizou desde Zizek à Chico Buarque (os dois, aliás, vivem neste blog) em sua crítica à passividade dos pensadores e doutrinadores com relação à adoção de princípios como o da eficiência, que mascara uma ideologia neoliberal fortíssima (Law & Economics), ao reformar o Judiciário brasileiro: "Cabe marcar que o “Princípio da Eficiência” produziu um câmbio epistemológico do Direito, tornando a forma de pensar a partir de meios, reproduzindo vítimas. Claro. Vítimas de um modelo de Estado do Bem Estar Social não realizado e que se encontra, paradoxalmente, em desconstrução. Dito de outra maneira, o Estado Social é imaginariamente desfeito sem nunca ter sido, efetivamente, erguido. Trata-se da destruição de ruínas-sociais. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho sustenta: “Neste quadro, não é admissível, em hipótese alguma, sinonimizar efetividade com eficiência, principalmente por desconhecimento. Afinal, aquela reclama uma análise dos fins; esta, a eficiência, desde a base neoliberal, responde aos meios.” O discurso neoliberal promove, assim, uma “despolitização da economia”, como argumenta Zizek, abrindo espaço para que o significante da eficiência penetre no jurídico como sendo a nova onda redentora, verdadeiro “grau zero” (Barthes) da releitura do Direito. A economia acaba se tornando algo praticamente sagrado da “Nova Ordem Mundial”, sem que se possa fazer barreira pelo e no Direito (Avelãs Nunes). A eficiência inserida no caput do art. 37 da Constituição da República, percebida desde o ponto de vista de Pareto, Coase ou Posner, passa a ser o critério pelo qual as decisões judiciais devem, necessariamente, submeter-se. Não se trata mais de num cotejo entre campos – econômico e jurídico –, mas na prevalência irrestrita da relação custo-benefício. Este discurso maniqueísta entre eficientes de um lado e ineficientes de outro, seduz aos incautos de sempre, os quais olham, mas não conseguem perceber o que se passa. A questão é mostrar que este é um falso dilema, adubado ideologicamente (Julio Cesar Marcellino Jr). Sair deste quadro de idéias colonizadas é tarefa individual. Faz-se ao preço de um estudo sério que não se apazigua com frases feitas emitidas pelo senso comum teórico (Warat) e vendidas no mercado de decisões judiciais. Até porque as utopias da Modernidade não geram mais o engajamento de justificar uma razão para morrer. Um fim último, perdido no mercado das pequenas satisfações pulsionais diárias, efêmeras, cuja satisfação não implica na prometida completude. Mesmo neste quadro parece que o engajamento se perde na preguiça e ausência de esperança de um projeto coletivo. O individualismo hedonista, nesta quadra, no campo do Direito Estético de hoje, esbarra no muro das lamentações, sempre. Os sonhos coletivos viraram souvernirs, mercadorias. Camisetas de “Che Guevara” sem que saiba quem é, ou o que representou... são um exemplo limítrofe."
No terceiro e último dia, além das conferências sobre Direito Administrativo e Justiça Eleitoral (as quais não assisti), ocorreu o debate sobre O Novo Código de Processo Civil com Alexandre Freitas Câmara, Teresa Arruda Alvim Wambier (da Comissão do CPC) e Flávio Pansieri (Presidente Executivo da ABDConst).
Depois, debatendo sobre as Novas Perspectivas do Pensamento Jurídico Contemporâneo, tivemos as brilhantes palestras de Antônio Carlos Wolkmer (UFSC), Marco Aurélio Marrafon (UFPR) e Marcelo Neves (CNJ). Os três palestrantes trataram de temas contidos em seus últimos livros (Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico, O Caráter Complexo da Decisão em Matéria Constitucional e Transconstitucionalismo).
Neves falou sobre transconstitucionalismo, que segundo ele "o entrelaçamento de ordens jurídicas diversas, tanto estatais como transnacionais, internacionais e supranacionais, em torno dos mesmos problemas de natureza constitucional. Ou seja, problemas de direitos fundamentais e limitação de poder que são discutidos ao mesmo tempo por tribunais de ordens diversas. Por exemplo, o comércio de pneus usados, que envolve questões ambientais e de liberdade econômica. Essas questões são discutidas ao mesmo tempo pela Organização Mundial do Comércio, pelo Mercosul e pelo Supremo Tribunal Federal no Brasil. O fato de a mesma questão de natureza constitucional ser enfrentada concomitantemente por diversas ordens leva ao transconstitucionalismo".
Wolkmer, por sua vez, fez uma interessante exposição sobre o pluralismo jurídico latino-americano - tema que já foi objeto de estudo em um de seus livros.
Marrafon, jovem professor, foi brilhante ao tratar da complexidade da decisão judicial, relembrando conceitos da semiótica após o linguistic-turn (que deu nova luz à analise da linguagem na ciência). Ou seja, a importância e a complexidade de uma decisão, de seus termos, e a construção da mesma.
Fechando o congresso, palestrou Luís Roberto Barroso sobre o tema Os Riscos da Hegemonia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo.
Uma experiência inesquecível, com dias intensos de discussões jurídicas. Discussões, aliás, das mais interessantes no âmbito jurídico.
Com certeza os R$ 150,00 valeram a pena.
Em três dias como estes você aprende mais do que três meses na Universidade. Pode apostar. O fato de estar lá, mesmo como ouvinte, já te enriquece.
não só te enriquece... como reaquece sua paixão pelo direito... foi muito intenso o simpósio... e aliás, foram 2200 pessoas, lotando o teatro guaíra! e infelizmente, sim, algumas pessoas foram pra brincar... outras pra ficar riscando fósforo dentro do teatro... (mas quem nunca foi um acadêmico perdido não é?)
ResponderExcluirLembro da vez que fomos ao tribunal, e após uma longa viagem etílica, a maioria dormiu nas sessões... absurdo? não... absurdo foi alguns desembargadores tbm dormirem...
fazer o quê? o direito tem dessas coisas, apaixonantes, e frustrantes...
sim... o simpósio valeu a pena...