Não se trata mais de um anúncio provocativo da
esquerda. O clima de instabilidade social é tamanho que até o mesmo o colunista
chefe para assuntos estrangeiros da renomada revista empresarial Financial Times, Gideon Rachman,
reconheceu que a aldeia global passa por um momento crítico: “Não me recordo de
nenhuma outra época em que tantos países, em todo o mundo, estivessem sendo
tomados por alguma forma de protestos nas ruas ou revolta popular”, escreveu no
final de agosto. “2011 está se tornando o ano da indignação global”, pontuou.
De fato, de janeiro a outubro, o mundo foi
sacudido por uma série de convulsões sociais que deflagram a total indignação
com o modelo econômico e político contemporâneo. No primeiro bimestre de 2011,
a Primavera Árabe - marcada pela surpreendente ocupação da Praça Tahrir e pela
intensidade dos protestos do povo tunisiano - deflagrou um amplo movimento
popular pró-democracia em rede que não se limitou ao Egito e Tunísia, mas abrangeu
a Líbia (ocupada posteriormente por forças militares ocidentais), Barein, Iêmen
e outros países do Oriente Médio. As primeiras peças do dominó tombaram por lá.
Na Europa, a coragem dos oprimidos árabes
inspirou os espanhois a tomar as praças de Madrid contra o fracasso das medidas
neoliberais das últimas décadas que levaram ao desemprego de 46% dos jovens no
país, dando notoriedade ao que ficou conhecido, em maio, como o “movimento dos
indignados” (15-M). O futebol já não anestesia a população espanhola, que
demanda democracia participativa e medidas de pleno emprego. Na Grécia,
intensificaram-se os protestos contra os planos de austeridade e a reforma do
Estado prescrita pelas instituições financeiras internacionais, enquanto que,
em Londres, protestos estudantis e atos de vandalismo ocorreram como reflexo ao
desmonte do Welfare State e a
ausência de um modelo econômico socialmente inclusivo. E não foi só. Na Itália
do tragicômico Berlusconi, mulheres exigiram respeito e voz política ao passo
que a organização de trabalhadores imateriais invadiu as ruas de Roma e
declarou a necessidade de uma nova esquerda capaz de mudanças estruturais. Não
sobrou nem mesmo para Israel: em Tel Aviv, desde julho, homens e mulheres da
classe média protestam contra os elevados custos de vida e exigem justiça
social substantiva e não um governo para a elite.
Na Índia, centenas de milhares ocuparam as ruas
de Nova Déli em apoio à greve de fome de Anna Hazare e protestaram em favor de
medidas institucionais de combate à corrupção, que hoje contamina quase toda a
esfera pública e privada do país. Eles exigem um basta. Na misteriosa China,
jovens organizaram manifestações virtuais por democracia real enquanto que
moradores do sudoeste do país foram às ruas exigir o fim das demolições de seus
lares em razão dos ambiciosos projetos do Partido Comunista. Os protestos
aumentaram nos últimos meses.
Na América, os efeitos da indignação popular
tornaram-se mais intensos no segundo semestre. No Chile, protestos estudantis
contra a educação privada estruturada pela equipe neoliberal do ditador
Pinochet paralisaram o país. A população deu amplo apoio ao movimento
estudantil e tomou as ruas exigindo educação pública e de qualidade. A morte do
jovem Manuel Gutiérrez, reflexo do violento choque entre os cidadãos chilenos e
a polícia, chegou a inspirar outras ocupações estudantis, como a da
Universidade Estadual de Maringá, em setembro, que exigiu durante dias o fim do
sucateamento das instituições públicas de ensino do país – eles sabem que os políticos
não atuam em defesa do bem público e que o sistema representativo em nada
representa os interesses populares. Os atos de revolta dos egípcios e dos
espanhois também foram citados como impulsores das diversas marchas (“da
maconha”, “da liberdade”, “das vadias”, “anticorrupção”) organizadas pelos
estudantes e profissionais liberais que tomaram as principais avenidas do
Brasil. Em São Paulo, placas exibiam as frases “#worldrevolution” e “tamo
junto” como símbolo da ação global.
A onda de revoltas abalou até mesmo o epicentro
da “democracia liberal” mais potente do mundo. A disparidade de renda
crescente, a ameaça aos padrões de vida da classe média e a indignação com a
elite política e empresarial levaram os estadunidenses a demonstrar a angústia
generalizada (o zeitgeist, espírito
do tempo presente) com a ocupação do centro financeiro de Manhattan, em Nova
Iorque. O movimento, chamado de Occupy
Wall Street (ou “os 99%”), já se alastrou para grande parte do país e, na
semana passada, resultou na prisão de 700 manifestantes.
Caracterizado pela ausência de organização
formal, o protesto estadunidense demonstra o grau de insatisfação popular com
os resultados da crise sistêmica global, resultante da globalização do
capitalismo financeiro e sua quase completa desregulamentação legitimada pela
ideologia neoliberal. A população percebeu que a injeção de dinheiro público
para salvar as instituições financeiras privadas no ápice da crise de 2008 foi
um dos maiores golpes que a classe trabalhadora já recebeu na história do país.
Os estadunidenses hoje exigem um imposto para as transações financeiras e uma
ampla reforma no modelo político representativo, infestado pelos lobistas
ligados ao setor privado.
Como aponta Ignácio Ramonet do Le Monde Diplomatique, as repercussões
sociais do cataclismo econômico são de uma brutalidade inédita: 23 milhões de
desempregados na União Europeia e mais de 80 milhões de pessoas pobres. Os
jovens, nesse processo de crise sistêmica, são as principais vítimas. A onda de
indignação que levanta a juventude do mundo - e que reflete até mesmo no
otimista Brasil - tem origem na crise do sistema econômico mantido forçosamente
nos últimos anos pelas potências ocidentais, apesar dos alarmes de
insustentabilidade social, pois
aumenta as desigualdades e eleva as tensões sociais, e ambiental – algo já denunciado por organizações não-governamentais
e pelas recentes catástrofes que abalaram o mundo neste início de século.
Num mundo globalizado, crescentemente integrado pela revolução informática, é impossível que a presente crise
política e econômica não traga reflexos para todos nós. O que fazer então? Um
esforço mínimo que deve ser realizado é tentar compreender a conexão entre os
fatos e buscar consensualmente visualizar um caminho que minimize os riscos e
danos, que já são muitos.
Se 2012 for, de fato, o ano de uma “nova
consciência humana” (como apregoam os mais espirituais), que seja um ano de
canalização da indignação global em inovações institucionais que permitam a
operacionalização de uma democracia o mais substantiva quanto possível e a
reestruturação da produção econômica de forma equitativa e sustentável.
Seria sonhar alto demais? Acho que não. Se
exigimos dignidade - isto é, o igual respeito e consideração por cada cidadão
por parte do poder público em razão do valor intrínseco de nossas vidas -, tais
mudanças são necessárias. Até lá, devemos também assumir que estamos indignados
e que um outro mundo é possível.
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