O "ano novo" é uma ficção humana. O que há é a continuidade da política e das formas de vida social. O mês de janeiro de 2014 mostrou ao mundo - lembremos que, para parte da mídia global, este é o "ano do Brasil" - que os problemas brasileiros persistem. Os rolezinhos e os protestos contra a Copa do Mundo são sinais de descontentamentos mais profundos. Sem dúvidas, são manifestações novas no aspecto formal (organização coletiva e forma de ação). A questão que permanece é saber se em seu aspecto substancial - desejos, pautas e significado das lutas - há algo de novo.
O enigma do rolezinho
O que aconteceria se milhares de jovens da periferia se reunissem espontaneamente nos novos shoppings centers de São Paulo para um rolezinho regado à funk e diversão? Um ataque de pânico da classe média consumista? Pavor por parte dos seguranças (que também são da periferia) diante da ausência de estratégia para conter o fluxo de corpos? Medo generalizado dos investidores e proprietários destes empreendimentos comerciais privados?
Ninguém poderia imaginar a dimensão da reação aos rolezinhos no país. O termo tornou-se, ao menos temporariamente, parte do vocabulário nacional. Virou até mesmo verbete da Wikipedia. Ao mesmo tempo que ocorriam os flash mobs da ralé - emprestando as palavras de Jessé de Souza -, advogados e associações de lojistas se mobilizaram para impedir judicialmente a entrada dos mais pobres nos shoppings.
Em pouco tempo surgiram decisões liminares impedindo a realização dos rolês, com base em frágeis argumentos privatistas. A coisa tinha cheiro e aparência de apartheid. O resultado foi uma avalanche de análises sociológicas, denunciado a persistência da segregação no Brasil (cf. 'Para sociólogos, jovens de rolezinho buscam reconhecimento', 'Os rolezinhos e um apartheid à brasileira', 'Rolezinhos: os pobres estão afrontando sua invisibilidade'). Para observadores como Leonardo Boff e Leonardo Sakamoto, a questão central dos rolezinhos é a afirmação e o reconhecimento, e não o consumo.
Em 12 de janeiro, um pouco antes da onda de análises sobre o fenômeno, manifestei minha preocupação com a dimensão jurídica dos rolezinhos (escrevi no Facebook: "Para mim, o 'rolezinho' é um enigma sociológico. Não sei se é uma apropriação simbólica do consumo ou afirmação identitária. É um ato político, mas não sei se é uma ação política reflexiva (pensada como tal). Também duvido que dá pra entender de fora, longe da periferia. Ele é representativo de algo maior. O que seria? Estamos confusos e distantes, mas temos um papel. Temos que vigiar as narrativas construídas sobre o 'rolezinho' na mídia e no judiciário. Reparem: não tem furto nem roubo. Mesmo assim, estão legitimando os pedidos dos proprietários dos shoppings de uso de força policial para 'identificar e expulsar quem é do rolê'. Esse discurso também é moldado juridicamente. Já existem 'liminares' construindo um novo apartheid com a linguagem do direito"). Ao observar as movimentações de advogados e as reações dos juízes, ficou claro que tal luta teria reflexos nas decisões judiciais sobre o tema.
Diante dos acalorados debates gerados pelas decisões liminares que proibiam os rolezinhos com base em argumentos privatistas ("o shopping é propriedade privada"), os advogados as associações de lojistas encontraram uma outra tese, de caráter público e emocionalmente atraente. Para eles, o rolezinho não pode acontecer por "questão de segurança". A tese é que os shoppings não estão preparados para receber milhares de pessoas ao mesmo tempo. Nestes casos, uma tragédia (como a da Boate Kiss) poderia acontecer novamente. Já existem decisões em São Paulo que acolhem tal argumento. Entretanto, tais decisões não permitem a seleção daqueles que podem entrar no shopping por questões de cor, aparência e classe social.
O desenrolar desta história também acontecerá no campo jurídico. Isso algo a ser observado de perto.
Protestos contra a copa e a violência policial
Uma segunda forma emblemática de movimento social em 2014 são os protestos contra a Copa do Mundo, que ocorreram em São Paulo e no Rio de Janeiro no final de janeiro. Tais protestos, organizados geralmente pela tática black bloc, são caracterizados pelo espírito antiglobalização e anticapitalismo. A violência é uma tática simbólica. O ataque aos bancos e aos prédios de grandes empresas (concessionárias, multinacionais, grandes lojas) é uma forma conhecida de protestos em outros países. Não é uma tática brasileira, mas sim global.
Os protestos contra a Copa, entretanto, possuem sim uma dimensão peculiar ao Brasil. Em especial, aos serviços públicos e nossa precária capacidade institucional. Nesse sentido, a análise de Bruno Cava é precisa: "O grito “Não vai ter Copa”, mais do que meramente contestar a forma de realização do megaevento, embute uma insatisfação maior, e bem concreta, com a partilha desigual da riqueza, o direito à cidade, a resposta dos governos aos manifestantes, e a sequência incrível de medidas autoritárias que não só vêm se tornando normalidade, mas também abertamente assumidas como tal. Nesse contexto, 'Não vai ter Copa' é uma formulação simples, com a legitimidade das próprias ruas de onde brotara em 2013, exprimindo bem a indignação, e aproveitando a oportunidade para polarizar um campo político saturado. O legado real está longe do prometido. Enquanto fábulas já estão sendo embolsadas pelas empresas de comunicação, hotelaria, cerveja, empreiteiras e a própria FIFA, os serviços à população vão de mal a pior. Quem usa transporte coletivo segue comprimido nos moinhos de gastar gente em que se converteram trens, ônibus e metrô. O trânsito de São Paulo ou Rio faz o tema da mobilidade urbana soar como uma quimera. Quem tenta marcar atendimento no sistema de saúde (público ou privado) sabe como, sem jeitinho ou liminar, só nas calendas gregas. Pra piorar a situação, ainda têm faltado luz e água em bairros distantes do centro, às vezes por semanas a fio sem qualquer solução. E a passagem ainda vai aumentar de preço…" (cf. 'Por que #NãovaiterCopa').
Cava ataca em seu texto aqueles que apoiam a Copa e conspiram que todo protesto contra é uma manifestação de direito. Não entrarei nesta polêmica, apesar de ser um ponto chave da discussão. O que quero chamar atenção é que os protestos contra a Copa estão desencadeando uma reação extremamente agressiva da polícia, em especial em São Paulo. Tal reação não pode ser naturalizada. Ao contrário, ela é a oportunidade para repensarmos nossas instituições.
Nas últimas semanas, fatos gravíssimos ocorreram. Em São Paulo, além da opressão aos jovens na Praça Roosevelt e o espancamento de manifestantes em um hotel na Rua Augusta, uma garota de 18 anos foi agredida e atropelada por policiais, enquanto permanecia deitada e indefesa na Rua Avanhandava (ver o vídeo aqui). A questão foi tratada na última edição do programa TV Folha. Tais casos tiveram pouca repercussão na mídia e ainda não mobilizaram a esfera pública.
A população parece satisfeita com a repressão e o "controle da ordem". São poucas as organizações e instituições que levantaram a pauta da desmilitarização da política no Brasil. Um bom exemplo é a gestão Contraponto do Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito da USP, que tem promovido eventos na Faculdade para discutir os desafios deste objetivo. Há também comunidades virtuais autoorganizadas, como a "Campanha pela desmilitarização da polícia".
O humor também é uma forma de colocar tal pauta para a sociedade brasileira. Chocar pelo excesso e pelo riso é uma estratégia válida de questionar a violência implícita de nossas instituições. O Porta dos Fundos, nesse sentido, fez um trabalho extraordinário ao criar um roteiro onde cidadãos fazem o papel de policiais, enquanto estes são agredidos por estarem à toa em uma rua do Rio de Janeiro.
Esse é um primeiro passo para uma discussão daquilo que queremos na sociedade brasileira. Obviamente, nada mudará de um dia para o outro. O que não podemos fazer é deixar tudo como está.
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