Snowden, Greenwald e Miranda: vigilância e intimidação


A absurda detenção do brasileiro David Miranda por quase nove horas no aeroporto de Heathrow, em Londres, iniciou um amplo debate na Inglaterra sobre os excessos do Terrorism Act, em especial a sétima seção da legislação (Schedule 7), que permite que suspeitos de terrorismo sejam interrogados por até nove horas e tenham seus bens apreendidos pela polícia britânica por sete dias.

O que mais chama atenção na suposta "detenção legal" de Miranda é o caráter intimidatório da polícia britânica e da inteligência estadunidense. Miranda não possui qualquer envolvimento com organizações terroristas. Ele simplesmente é o parceiro do jornalista estadunidense Glenn Greenwald, advogado constitucionalista que ganhou notoriedade pela publicação de matérias jornalísticas embasadas em documentos vazados pelo whistleblower Edward Snowden. 

Em razão da atuação de Glenn Greenwald no jornal britânico The Guardian, iniciou-se um debate global nos últimos meses sobre a vigilância exercida pela National Security Agency (NSA) dos Estados Unidos. Em 06 de junho, Greenwald revelou o conteúdo da decisão de uma "corte secreta" (a United States Foreign Intelligence Surveillance Court), que obrigava que a empresa Verizon enviasse os metadados das ligações de seus clientes para a NSA (ver a decisão aqui). Tal reportagem deflagrou uma ampla discussão sobre os poderes da burocracia pública e a falta de proteção da privacidade no país que se considera "o defensor da liberdade".

Um dia após a publicação do caso Verizon, a partir dos documentos enviados pelo ex-técnico da CIA Edward Snowden - que recebeu asilo político do governo russo -, Greenwald publicou a emblemática matéria NSA Prism program taps in to user data to Apple, Google and others. Essa reportagem mostrou como que, ao longo dos últimos anos, a NSA desenvolveu um sistema de coleta de dados das grandes companhias globais. Em Hong Kong, juntamente com a documentarista Laura Poitras, Glenn entrevistou Edward Snowden. A explicação de Snowden para o vazamento de documentos secretos de seu próprio país é um sinal claro da potencial perda de liberdade no ocidente e a ascensão de uma sociedade de controle global legitimada pelo discurso de combate ao terror.



Após o estouro do caso Snowden, Greenwald trabalhou intensamente em textos que buscavam explicar a arquitetura jurídica que dava sustentação às práticas da NSA (cf. 'The top secret rules that allow NSA to use US data without a warrant' e 'Fisa court oversight: a look inside a secret and empty process'). Em outras palavras, Glenn fez aquilo que os acadêmicos de direito deveriam ter feito, mas não fizeram. Poucas faculdades de direito colocaram a "conjectura Snowden" como pauta central de pesquisa, por medo ou falta de massa crítica.

Em sua casa no Rio de Janeiro - onde mora com David Miranda -, Greenwald publicou em julho importantes matérias sobre como o Brasil é afetado pela política do NSA. Em uma parceria com o jornal O Globo, Greenwald explicou ao público brasileiro o funcionamento da estrutura de vigilância de dados do governo Obama (cf. 'EUA espionaram milhões de e-mails e ligações de brasileiros'). Através do The Guardian, o jornalista fez um alerta que não pode ser ignorado: "Que o governo dos EUA - em segredo completo - está construindo um aparato de espionagem direcionado não somente a seus cidadãos, mas a todos os cidadãos do mundo, é algo que possui profundas consequências. Ele erode, ou mesmo elimina, a habilidade de usar a internet sem qualquer resquício de privacidade ou segurança  pessoal. Ele protege o governo dos EUA com poderes ilimitados sobre aqueles a quem ele não tem responsabilização. Ele permite que aliados dos EUA - incluindo aqueles agressivamente opressores - se beneficiem da espionagem indiscriminada sobre a comunicação dos seus cidadãos. Ele radicalmente altera o equilíbrio de poder entre os EUA e os cidadãos comuns do mundo. E ele envia um inconfundível sinal para o mundo de que enquanto os EUA muito minimamente valorizam os direitos de privacidade dos americanos, o país atribui valor zero para a privacidade de todos os outros no planeta" (cf. 'The NSA's mass and indiscriminate spying on Brazilians').

Após a influente matéria de Glenn Greenwald, o programa Fantástico da Rede Globo, produziu uma excelente reportagem sobre as denúncias de Snowden e o trabalho jornalístico de Greenwald no Brasil. A reverberação do caso no país levou a diplomacia nacional a se posicionar a respeito. Antonio Patriota conduziu reuniões no Itamaraty sobre o programa de vigilância da NSA e iniciou uma qualificada discussão sobre as opções que a diplomacia brasileira teria para demonstrar descontentamento com o controle de dados de brasileiros e empresas nacionais públicas e privadas.



Diante deste cenário, é fácil entender qual é o real significado da detenção de David Miranda na manhã de domingo (18 de agosto) em Heathrow: um recado de intimidação contra os jornalistas que estão denunciando as estruturas governamentais que estão corroendo a privacidade e a liberdade.

Felizmente, a reação da diplomacia inglesa, da esquerda inglesa e dos jornalistas independentes foi bem articulada. O The Guardian, em especial, abriu espaço para que Glenn Greenwald contra-atacasse. Em um texto claramente emocionado, o jornalista estadunidense argumentou: "Isso é obviamente uma escalada dos seus ataques [NSA] sobre os processos de reunião de informações e jornalismo. É ruim o suficiente processar e prender fontes de informação. É pior prender jornalistas que reportam a verdade. Mas começar a deter membros da família e aqueles amados dos jornalistas é simplesmente despótico. Até mesmo a Mafia possui regras éticas contra o ataque a membros da família das pessoas ameaçadas por ela. Mas os fantoches do Reino Unido e seus donos no 'Estado de Segurança Nacional Americano' obviamente não se sentem limitados por esses mínimos escrúpulos" (cf. 'Glenn Greenwald: detaining my partner was a failed attempt at intimidation').

O "caso Miranda" provocou enormes atritos entre o Brasil e o Reino Unido. Mas, na análise de Mark Weisbrot, revelou que o Brasil não é mais subserviente à política de segurança dos Estados Unidos (cf. 'Miranda's rights: how Europe can learn from Latin America's independence') - ao contrário dos países europeus, que ainda seguem as ordens enviadas de Washington (como ficou claro no escandaloso caso do Presidente Evo Morales, que foi impedido de aterrizar em três países europeus após uma denúncia da NSA de que Edward Snowden estaria em seu avião).

Miranda é a ponta do iceberg. Os defensores do controle, da segurança e do poder do Império argumentam que a detenção se deu dentro da legalidade, pois os documentos que Miranda carregava por Glenn Greenwald "ameaçavam a segurança do Reino Unido e dos Estados Unidos". Mas não se pode ignorar que a NSA quer silenciar Edward Snowden e Greenwald a qualquer custo - e que a detenção de Miranda foi um sinal claro para a rede de jornalistas e colaboradores. 

O NSA é apenas uma estrutura burocrática governamental. Por trás de um Estado e de um governo existem pessoas. Talvez não esteja claro que existe um grupo de poderosas pessoas que quer punir os whistleblowers e os jornalistas a fim de que as próximas gerações tenham medo e não façam denúncias por princípios e valores como liberdade de expressão e privacidade. A condenação de Bradley Manning é um exemplo claro. Mas essa é uma batalha que está somente no início. A nossa tarefa é promover a abertura dos dados e incentivar que as pessoas formem seus juízos de valor através de um amplo debate público sobre como equilibrar segurança, privacidade e liberdade. Não podemos deixar que a intimidação silencie e destrua a coragem.

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