Globalização, Advocacia e Educação Jurídica

Não é preciso ter muita experiência para entender que a advocacia mudou. Foi-se o tempo do profissional liberal dotado de cultura parecerista. O atual momento, fortemente influenciado pela integração dos mercados econômicos e pelo processo de globalização, é de oligopolização e especialização dos serviços jurídicos. Saem de cena os escritórios de tradição europeia continental, geralmente formados por poucos advogados e com área de atuação abrangente, e proliferam-se as grandes firmas de advocacia, de forte inspiração inglesa e estadunidense, estruturadas hierarquicamente com profissionais de diversas áreas (contabilidade, administração, marketing, economia e direito) dedicados a áreas específicas. O fenômeno é o mesmo no mundo ocidental: com a chegada das grandes sociedades internacionalizadas de advogados, a prática advocatícia dos países europeus e latino-americanos está cada dia mais próxima daquela exercida nos Estados Unidos, o que implica também na contestação do poder exercido pela velha elite profissional por novos atores  internacionais que desejam conquistar novos mercados e reconfigurar o campo jurídico - algo já discutido, há mais de quinze anos, por David Trubek, Yves Dezalay, Ruch Buchanan e John Davis no brilhante ensaio Global Restructuring and the Law: studies of the internationalization of legal fields and the creation of transnational arenas, traduzido pela equipe de Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e publicado no livro Direito e Globalização Econômica: implicações e perspectivas, de José Eduardo Faria, em 1996.

Competição entre elites profissionais e disputas de poder caracterizam a internacionalização do direito. A análise de Pierre Bourdie, que dedicou muitos anos à compreensão das relações de poder do campo jurídico, é certeira: "Os grandes escritórios de advocacia têm de contar com a resistência dos campos legais nacionais ameaçados pela nova ordem jurídica mundial ou, mais exatamente, com as relações de poder e os conflitos, gerados dentro destes campos, entre os modernizadores, que se posicionam em favor da internacionalização, e os tradicionalistas, que colocam seu dinheiro em barreiras protecionistas e na manutenção da tradição nacional". O que se percebe no Brasil é justamente o conflito entre "modernizadores" e "tradicionalistas" com relação ao debate sobre a possibilidade de grandes empresas internacionais (de capital aberto) atuarem na área jurídica. A Ordem dos Advogados do Brasil ainda mantem o monopólio sobre a advocacia, mas representantes do governo britânico têm pressionado o governo brasileiro a garantir maior abertura a grandes firmas estrangeiras. 

O fator determinante da pressão internacional é que escritórios de advocacia locais têm atuado fortemente na estruturação de operações de fusões empresariais e, também, nas de abertura de capital (IPOs), áreas altamente lucrativas. O monopólio da prestação de serviços jurídicos, entretanto, é fictício. Como afirma Ludmila Santos, em matéria publicada no Conjur, "apesar da vedação legal, já há pelo menos 17 bancas estrangeiras operando em São Paulo. A brecha está na autorização para que o advogado de outro país possa atuar como consultor em Direito do seu país de origem. Na prática, vai-se um pouco além, reclamam os concorrentes brasileiros. Há casos em que o estrangeiro opera amplamente, mas em nome dos brasileiros. No papel, firma-se uma associação, mas na vida real a banca local é utilizada como barriga de aluguel". Os advogados brasileiros defendem que profissionais estrangeiros só podem realizar consultoria. Entretanto, é inegável a penetração das mega-firmas no Brasil.

A estrutura dos escritórios de advocacia está cada vez mais semelhante que as American law firms. Em geral, há uma divisão binária entre associados assalariados (salaried associated) e sócios (equity partners), que, no Brasil, reflete-se na progressão de carreira entre advogado junior, advogado senior/pleno e sócio da banca de advocacia. A pesquisadora Luciana Gross Cunha, na introdução de uma pesquisa empírica sobre o perfil dos advogados em São Paulo (cf. 'Sociedades de advogados e tendências atuais'), reconhece que "nas últimas décadas o mercado de atuação das sociedades de advogados no Brasil vem passando por alguma transformação, resultado do surgimento de novas áreas de atuação para os advogados e de uma maior competição entre as sociedades de advogados na disputa do mercado. Um dos indícios desta mudança é a crescente profissionalização destas organizações que parecem não mais ser, exclusivamente, escritórios familiares". Há, enfim, forte influência da gestão das firmas anglo-saxônicas, como demonstram os padrões de organização de grandes escritórios como Pinheiro Neto e Demarest & Almeida.

Como demonstra John Flood, sociólogo do direito da Universidade de Warwick especializado no estudo sobre a globalização econômica e seus reflexos na profissão jurídica, a solução encontrada pelas mega-firmas de Londres e Nova Iorque foi a formação de parcerias multinacionais. Com a internacionalização da profissão legal, a litigância é então substituída pelos serviços de consultoria financeira, com sistemas privados apropriados para resolução de conflitos como a arbitragem (cf. 'Megalawyering in the Global Order: the cultural, social and economic transformation of global legal practice').

A influência das grandes firmas de países de tradição jurídica de common law e a transformação da advocacia após a abertura econômica dos países latino-americanos refletem, inevitavelmente, na educação jurídica brasileira. Como afirmam os pesquisadores da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo André Nahoum, Camila Duran, Fernando Rugistsky, Guilherme Gonçalves e Melissa Mestriner, "em decorrência da globalização, e particularmente das fusões de grandes conglomerados financeiros, o mercado advocatício sofreu um processo de relativa oligopolização e especialização dos serviços jurídicos, organizando-se na forma de grandes firmas de advogados. Essas firmas são instituições de elite que possuem em sua carteira os mais poderosos clientes e atraem os egressos mais capacitados das academias de direito. Por essa razão, exercem enorme influência sobre a cultura jurídica e possuem um enorme apelo entre os alunos que buscam uma especialização com foco nas relações jurídicas empresariais" (cf. 'Globalização, Advocacia e Cursos de Especialização').

Não é à toa que a FGV São Paulo tem como foco as especializações em direito societário, direito tributário, arbitragem e direito global. Prosseguem os pesquisadores de lá: "As transformações na prestação de serviços jurídicos promovidas pelas megafirmas de advogados e uma clientela constituída por grandes corporações transnacionais influenciaram sobremaneira o mercado de trabalho e têm exercido enorme pressão sobre os centros de ensino e os profissionais ainda vinculados a uma prática quase artesanal. Nessas grandes organizações, o advogado generalista foi substituído pelo advogado especializado em função de setores da economia. Essa substituição tem representado um forte incentivo à aquisição de maior conhecimento em áreas determina das do saber jurídico. Para contornar o excesso de especialização, os megaescritórios estruturam redes de expertos de diferentes campos – advogados, contadores, economistas, analistas de mercado, administradores, engenheiros, urbanistas – capazes de desenvolver soluções integradas. Evidentemente a formação do conhecimento especializado deve ser precedida de uma formação teórica e crítica do direito que confira ao profissional capacidade de apreensão da complexidade social. Essa função deve ser desempenhada pela graduação. Aos cursos de especialização cabe a instrumentalização desse conhecimento para o saber fazer jurídico (knowhow jurídico). Esses cursos devem se basear na observação da aplicação do direito, na forma como os conceitos são – e podem ser – concretizados na atividade advocatícia e na interpretação dos tribunais".

As especializações estão muito mais próximas de ciências antes ignoradas pelos juristas como economia, ciências contábeis e administração. Esse parece ser um cenário irreversível. O impacto na educação, principalmente nas instituições "de ponta" quando o foco é empresarial, é evidente: pretende-se formar o advogado que integrará as grandes bancas e as parcerias multinacionais.

Tanto a advocacia quanto o ensino jurídico sofrerão grandes mudanças pelo aprofundamento da integração dos mercados e a posição econômica atingida pelo Brasil, em escala global, junto aos BRICS. Resta formular as perguntas certas sobre o grau de tais mudanças.

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