Bruno Cava: Marazzi e a financeirização da vida

Enquanto a esquerda defende a regulamentação do sistema financeiro, tributação das transações no mercado de ações e a "volta do Estado" numa perspectiva keynesiana, a direita defende o desmonte do Estado regulador em prol de um modelo schumpeteriano de empreendedorismo (workfare state) e destruição criativa, autorregulação do mercado e garantia dos direitos patrimoniais tal como o ideal hayekiano. Essas são as alternativas para salvar o capitalismo da grave crise sistêmica que o Ocidente vivencia há mais de três anos, causada principalmente pela financeirização desregrada da economia global. 

Mas o capitalismo tem salvação? O capitalismo não é a crise? Quem ousa pensar em alternativas para além do capitalismo?

São essas as provocações de Bruno Cava, jovem filósofo do Rio de Janeiro, que, partindo das ideias do economista suíço e pensador radical Christian Mazarri, propõe a tarefa árdua de lutar e pensar em uma outra resposta para a crise, descartando desde já a possibilidade de "melhoria do capitalismo". Salvar o capitalismo  seria repetir os erros do passado. Tampouco há possibilidade de simplesmente desfinanceirizá-lo, retomando os "anos de ouro" do Estado-nacional keynesiano de bem-estar social (era do fordismo atlântico). Para Cava, a financeirização não é somente da economia, mas da própria vida. Eis o biocapitalismo de que falava Michel Foucault, e que agora opera em níveis múltiplos e articulados: (i) como cimentador do capitalismo global, (ii) como modo de regulação da economia política, e (iii) como forma de governança social.

A violência do capitalismo financeiro chegou a um nível nunca antes experimentado. O momento, segundo ele, é de ruptura.


As Finanças Causaram a Crise Global?
Bruno Cava

Fala-se muito em crise do capitalismo financeiro. A narrativa é mais ou menos assim: Os culpados principais da crise foram bancos internacionais e grupos de investimento, os grandes players que jogam com a riqueza mundial. Ao longo da última década, extrapolaram todos os limites da cobiça para realizar uma falsa multiplicação dos pães. Mirabolaram produtos financeiros, os derivativos, com o que criaram valor onde não havia nada. Como esse ouro de tolos, incharam bolhas especulativas, descoladas da economia real, — fantasiosas e insustentáveis. Sem ser eleitos por ninguém, jogaram muito alto e sem nenhuma garantia com o dinheiro alheio. Aproveitaram-se da desregulamentação do setor e fizeram de refém os governos nacionais, incapazes de conter a luxúria por lucros fabulosos ou talvez cúmplices. Banqueiros, financistas, acionistas e executivos deitaram e rolaram em cima da economia mundial por anos e agora todos pagamos o pato, enquanto os verdadeiros culpados são salvos com o dinheiro público e ainda posam de popstar. Não admira o movimento Occupy nos Estados Unidos tenha começado por Wall Street.

É o que temos ouvido todos os dias, mas não é bem assim.

Boa parte das críticas se fundamenta numa superficial separação entre finanças e economia real. Como se a dimensão financeira fosse um a-mais ao aspecto real da produção. Como se existissem capitalistas que realmente organizam e comandam a produção de coisas; e os meramente financeiros, que se limitam a atuar na realidade virtual dos mercados e bolsas de valores. Os bons e velhos patrões empreendedores versus os especuladores yuppies.

Essa interpretação aparece à esquerda e à direita do espectro político-ideológico.

Ambos os lados acusam o capitalismo financeiro de exagerar na dose de capital fictício em proporção ao capital real. Para um e outro, não dá pra continuar apostando na ideologia da mão invisível que vai de Adam Smith a Alan Greenspan, — nessa mistificada racionalidade “autônoma” dos mercados e agentes financeiros. Portanto, é preciso aplicar políticas regulativas para controlar o funcionamento do sistema. É preciso punir e criminalizar condutas gananciosas e irresponsáveis. É preciso repensar um novo marco monetário internacional, como o antigo Bretton Woods (1944-72). É preciso resgatar a esfera pública contra o alto clero da econometria.

A direita propugna por uma aliança entre trabalhadores de bem e capitalistas de bem, num novo pacto produtivo, em nome dos valores do trabalho (um novo New Deal). É a posição do Tea Party. A esquerda aproveita para novamente dar vivas ao estado nacional como gestor do capital coletivo, capaz não só de controlar o mercado financeiro como distribuir os seus ganhos. É o discurso do desenvolvimento com inclusão social do governo brasileiro e sua nomenklatura economista. Os dois campos concordam que, assim, se poderão gerar empregos, alimentar a demanda interna e retomar o crescimento.

Há uma limitação séria nessas interpretações, apesar de predominar nas revistas, jornais e sites, especializados ou não. Serão as finanças algo acoplado à economia dita real, que teriam pervertido o capitalismo original, tornando-o mais injusto? É possível salvar o capitalismo de antes da financeirização?

Há uma linha crítica que vem desde Marx que acha que não. Me refiro especialmente ao economista Christian Marazzi, de quem resenhei um livro ano passado. Este ano, li mais artigos e outros dois livros dele: A violência do capitalismo financeiro [2010, SemioTexte, em inglês] e O comunismo do capital: financeirização, biopolítica do trabalho e crise global [2010, ombre corte, em italiano]. Descendente da Escola da Regulação Francesa (Michel Aglietta, Robert Boyer, Alain Lipietz etc) e do pós-operaísmo italiano (Antonio Negri), o autor tem o mérito de nunca deixar de reportar as crises à sua dimensão política e social. Quer dizer, não analisa a crise pela ótica de condições objetivas, mas da própria dinâmica de produção de sujeitos sociais, antagonistas ou não.

Para ele, a financeirização é unha e carne com o capitalismo. Não há processo do capital sem crédito, — o que Marx desenvolve principalmente no Livro III de O Capital. A crise global é do capitalismo tout court. Pode-se qualificá-la como financeira apenas na medida em que é a presente forma de organização do capitalismo. Mas nunca no sentido dominante, que se poderia salvar algum capitalismo bom do capitalismo financeiro mau. O que faz toda a diferença. Não adianta tentar solucionar a crise do capitalismo financeiro corrigindo o financeiro, — quando este é apenas uma consequência daquele. O capitalismo é a crise. Tentar sair da crise melhorando o capitalismo já é repetir a própria lógica de desenvolvimento do sistema, como aconteceu ao longo das crises sistêmicas desde o século 19. Pode-se trabalhar e lutar para outra resposta, afirma Marazzi.

Para ele, as finanças estão imbricadas no processo produtivo como um todo, da produção à circulação, da distribuição ao consumo. De um modo ou de outro, as operações econômicas passam pelos bancos, operadoras de crédito, financiamentos ou investimentos a curto, médio e longo prazos. Tente sobreviver sem uma conta no banco… Cada vez que o sujeito realiza um ato econômico, — que produz, circula, troca, consome etc — já está inscrito nos inúmeros circuitos financeiros. E aí é explorado, pelo fato mesmo de submeter-se a uma métrica de valor, a uma partição de lucros e riscos embutida em juros, taxas e rendimentos. Essa métrica e suas cotações são decididas bem longe dos cidadãos, pelas bolsas de valores, políticas monetárias, agências de classificação de risco e sistema bancário. O cidadão fica à mercê de um mundo cujas leis tudo faz crer alienígenas, — tão distante de nosso cotidiano quanto as páginas de economia dos jornais diários. Enquanto isso, a cauda longa da produtividade social vai sendo vampirizada através do valor-finança, dessa lógica de medir e extrair valor, desde os atos mais prosaicos da economia.

Um ponto de Marazzi é que as finanças existem por razões estruturais do sistema. A crise das finanças constitui uma crise histórica, sintética de todas as contradições e limitações que o desenvolvimento do capitalismo acumulou ao longo dos séculos. Demais, a financeirização não é somente da economia, mas da vida. Por isso, desdobrando um conceito de Michel Foucault, ele fala em biocapitalismo. O biocapitalismo, que é o capitalismo financeirizado, opera em níveis múltiplos e articulados, grosso modo: 1) como cimentador do capitalismo global, 2) como modo de regulação da economia política, 3) como forma de governança social.

1) Nada parece ser mais central para os governos nacionais do que as políticas monetárias e os bancos centrais, que tentam disciplinar a repartição da riqueza entre devedores e rentistas. A política monetária é a primeira a sofrer a ingerência das instituições internacionais, especialmente nas crises. A globalização não só passa pelas finanças, mas nela se articula política e economicamente. É necessário que estados nacionais e políticas monetárias se integrem ao sistema financeiro. Seu funcionamento globalizado é administrado por uma aristocracia de instituições internacionais, gigantescos bancos de investimento e outros grandes players. Marazzi chama de “comunismo do capital” essa cooperação de capitalistas em organismos e fóruns como Davos, e a sua codificação linguística é sempre financeira. Com ela, permitem mensurar e organizar os fluxos de capital, fabricar consensos políticos e exercer comando sobre os governos nacionais.

2) Como modo de regulação, refere-se ao papel da financeirização para a demanda solvente. Ou seja, dinheiro para gastar + desejo (o núcleo de toda a produção). Sem a demanda solvente, o capitalista não realiza o lucro. É que, para se reproduzir, toda produção precisa concluir o ciclo com um suplemento de valor, que então é reinvestido. É o chamado regime de acumulação e varia em função da época. Hoje, disseminar crédito em toda a sociedade se torna uma estratégia para mover a economia. Em consequência, o acesso à moradia, educação, bens duráveis, pequenos negócios — tudo isso se torna possível graças à facilitação do crédito. Ao longo das últimas décadas, um conjunto de medidas nacionais e internacionais favoreceu o endividamento generalizado das pessoas, mormente na Europa e EUA. Tornou-se normal assumir hipotecas, financiar carros, investir em bolsas universitárias, aplicar na previdência privada etc. O que antes era função do estado de bem estar (emprego e seguridade social), agora se viabiliza com as finanças. Não à toa somos incentivados a usar e abusar do cartão de crédito, que chegam aos cachos pelo correio. Daí a multiplicação de recursos creditícios à população. Que é acompanhada pela mirabolação dos produtos financeiros “derivados” (refinanciamentos, colateralização de riscos, créditos swaps, mercado futuro etc), superdimensionando a base monetária.

3) Mas não é só isso. No capitalismo contemporâneo, a financeirização da vida atua também como modo de governar as populações. Nos tempos em que se estruturava no welfare, acontecia enquadrando as pessoas na tríade emprego, nação e família. Hoje, noutro modelo, a pessoa fica condicionada pelas finanças. Tem de planejar-se a longo prazo: como vai investir em moradia, em previdência (fundos de pensão), em educação, enfim, em como estruturar a sua vida mediante as estratégias de investimento, retorno e juros, em total dependência do sistema financeiro. A própria família se torna um investimento estratégico, visto que o estado não garante mais nada. A governança opera flexível e difusa, a sociedade precisa aprender a gerir os riscos e oportunidades. Não precisa mais disciplinar o sujeito estritamente nos moldes do trabalhador empregado (pleno emprego), cidadão de bem (nação) e homem/mulher de família. Reestruturam-se formas mais versáteis: empregabilidade (workfare), cidadão cosmopolita (globalização) e relacionamentos líquidos. Por isso, na financeirização, está em jogo também a produção de certa subjetividade do homem moderno, — numa dimensão antropológica que às vezes passa despercebida, mesmo em tempos de crise.

No cômputo de seus fatores, a financeirização da vida tem possibilitado não apenas uma transferência brutal da massa endividada (99%) aos rentistas (1%), mas também tem fabricado governamentalidade das populações em escala global.

Mais do que se pautar pelas estratégias florentinas e teorias conspiratórias dos tubarões, como num filme de Oliver Stone, o sistema capitalista global está entranhado no cotidiano e nas formas de vida contemporâneas. É como se fosse uma argamassa social e todos estamos incluídos em sua dinâmica. O mundo das finanças é a culminância de uma abstração que atinge proporções planetárias, e à qual ainda rendemos a nossa servidão voluntária. Nessa perspectiva biocapitalista, o sistema precisa investir a vida de todos, incluir a todos nas dinâmicas de crédito e capitalização das esperanças (investimentos) e medos (securitização), — mas ao mesmo tempo nos inclui como excluídos do rentismo. Eis aí a contradição esgarçada pela crise: entre as forças produtivas (multidão de endividados) e as relações de produção (a financeirização, que concentra a riqueza).

Esse processo não pode ser separado do capitalismo — ele é o seu próprio modo de funcionamento, radicalizado a partir das crises anteriores, nos anos 1970-80. Não há mais economia real a que pudéssemos regressar. Porque o mundo não é mais como era em 1950 ou 1960, quando em alguns países do hemisfério norte havia welfare state. Alguns economistas do campo da esquerda tupiniquim até hoje sonham com o pleno emprego e a seguridade social da Suécia de 1970, numa nostalgia do que não vivemos. Porém, não só a economia não é a mesma: as relações políticas, os sujeitos sociais e o próprio desejo sofreram mutações irreversíveis.

Isso tudo entrou em crise. Qual seria o caminho além de uma tentativa de sanear o capitalismo ou tentar voltar ao estado social europeu do pós-guerra? Como entrar na crise, assumi-la em seu sentido pleno como crise política e social, e acima de tudo radicalizá-la para tentar superar as limitações e contradições mais recônditas e simultaneamente óbvias do sistema? Eis aí desafios enormes, à altura do desejo criativo de uma geração que se revolta pelo mundo todo. É assunto apaixonante que, com as leituras de Marazzi e outros pensadores originais, pretendo abordar em próximos artigos.

2 comentários:

  1. Rafa: O post do Bruno é sensacional, mas vale muito a pena ler o ensaio do Marazzi, publicado no ótimo "A Crise da Economia Global -- mercados financeiros, lutas sociais e novos cenários políticos" - Civilização Brasileiro

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  2. Nossa! Esse filósofo ai erra totalmente o ponto. E falar desse jeito de Marx depois que Menger e Bohm-Bawerk já demoliram toda a base da teoria da exploração é estar atrasado intelectualmente, hein! Péssima coisa pra qualquer um que se queira filósofo. Além disso, Bastiat já deu um baile em Proudhon (principal influência econômica pra Marx, a meu ver) em um debate justamente sobre o crédito fácil e sem lastro que o anarquista francês queria implantar.

    O que o filósofo ai chama de capitalismo não tem praticamente nada de capitalismo; isso é o próprio intervencionismo em ação, cada vez maior desde que os governos implantaram o monopólio de criação de dinheiro.
    O crédito é totalmente sadio e necessário pra qualquer economia, desde que venha de poupança e poupança quer dizer abstenção de consumo, quer dizer que produzo mais que consumo e por isso ofereço à sociedade mais que preciso. Se o crédito possui lastro, é impossível haver crises do tamanho dessas que se avolumam e na grande maioria dos casos ele ajuda empreendedores a criarem empresas pra produzirem o que a sociedade demanda, a vencerem a nossa terrível realidade natural: a escassez e a miséria. O máximo que ocorre é empresários, empreendedores e especuladores mal sucedidos falirem, bancarem os prejuízos e darem lugar pra outros que sejam realmente eficientes em oferecer bens e serviços realmente necessários para a sociedade.
    Só que desde que os governos no mundo todo se tornaram alquimistas, produzindo "riqueza" do nada ao simplesmente imprimirem dinheiro em seus bancos centrais e se cartelizarem com o sistema bancário, permitindo as reservas fracionárias nesses bancos, a economia se tornou financeirizada e bolhas e crises estão cada vez mais frequentes.
    No momento que esse dinheiro criado do nada entra na economia, ele vai pra alguns setores, principalmente o financeiro e o imobiliário. O sinal visível é o aumento de preços e possibilidade de lucros fáceis, o que chama muitos especuladores. E quando a coisa toda se torna visivelmente insustentável, pois o crescimento foi inflado pela inflação monetária fraudada, todo o sistema rui. Nesse ponto surgem as crises e recessões mostrando todo o investimento insustentável proporcionado por quem? Pelos governos, bancos centrais e suas impressoras mágicas. E no momento que os empresários, empreendedores e especuladores, principalmente os amigos do rei, ligados à máquina pública, falem por seus investimentos errôneos clamam pela ajuda justamente dos seus amigos nos governos que bancam tudo com os recursos roubados do cidadão trabalhador via impostos; além, é claro, de mais rodadas de fraude monetária que irá novamente inflar essa financeirização. Num sistema capitalista esses caras teriam falido e pronto, as crises mostrariam investimentos errôneos e serviriam como remédio pra "curá-los". Só num intervencionismo é que o governo os salva. E mesmo assim chamam o sistema de capitalista? Por favor, né?!
    Mas o mais cômico, todavia trágico, é ver intelectuais se atrapalhando com conceitos básicos e pregando justamente o que gera toda essa financeirização da economia: a intervenção estatal. Além disso, por serem "formadores de opinião", fazem a cuca de quase todo mundo sobre os malefícios do capitalismo, como se esse sistema fosse sequer entendido por eles, apesar de protegerem suas propriedades; ninguém é de ferro. Sinceramente. Se eu fosse um desses empresários ligados ao sistema eu investiria maciçamente na formação desses intelectuais acadêmicos. Faria como aquele empresário de trigo na Argentina que bancava a escola de Frankfurt. Num ambiente estatista intervencionista esse é o melhor ramo de investimentos. Ganho grana com especulações possíveis por causa da inflação monetária; se me der mal chamo o governo pra me salvar e com um pouquinho de dinheiro banco os intelectuais pra que eles mantenham esse sistema benéfico... pra mim é claro!

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