Um outro mundo é possível?

Nas primeiras linhas do livro "The End of The World As We Know It: social science for the twenty-first century" (1999), o sociológo estadunidense Immanuel Wallerstein escreveu: "a primeira metade do século XXI será, acredito eu, muito mais difícil, mais inquietante, e ainda sim mais aberta do que qualquer coisa que nós conhecemos no século XX". Sua premissa era de que o sistema-mundo moderno, um sistema histórico com vida finita, havia entrado em crise terminal.

Agora, fazendo uma releitura do movimento Occupy Wall Street, Wallerstein acredita que os protestos no coração do sistema financeiro global podem, de fato, modificar a visão de largos segmentos da população estadunidense sobre as realidades da crise estrutural do capitalismo e as grandes transformações geopolíticas que estão ocorrendo. O respeitado autor da teoria do "sistema-mundo", ex-presidente da International Sociological Association, afirma aquilo que sinalizei em outros textos: o movimento Occupy Wall Street é o acontecimento político mais importante nos Estados Unidos desde as rebeliões de 1968, das quais é descendente ou continuação direta.

Segue sua análise sobre a importância do movimento e como ele já possui o mérito de ser um acontecido bem-sucedido.


Occupy Wall Street: quatro etapas e um desafio
Por Immanuel Wallerestein. Tradução: Paulo Cezar de Mello (Outras Palavras)

O movimento Occupy Wall Street – por enquanto, é um movimento – é o acontecimento político mais importante nos Estados Unidos desde as rebeliões de 1968, das quais é descendente ou continuação direta.

Por que começou nos Estados Unidos em dado momento – e não três dias, três meses, três anos antes ou depois –, jamais saberemos ao certo. As condições estavam dadas: crescimento agudo do desastre econômico, não só para os realmente acometidos pela pobreza mas também para um segmento cada vez mais vasto dos trabalhadores pobres; incríveis exageros (exploração, ganância) do 1% mais rico da população americana (“Wall Street”); o exemplo de iradas rebeliões ao redor do mundo (a “Primavera Árabe”, os indignados espanhóis, os estudantes chilenos, os sindicatos de Wisconsin e mais uma longa lista). Não importa tanto qual fagulha acendeu a fogueira. Ela foi acesa.

Na primeira etapa – os dias iniciais –, o movimento resumia-se a um punhado de pessoas audaciosas, e na maioria jovens, procurando se manifestar. A imprensa ignorou-as completamente. Até que alguns chefes de polícia imbecis acharam que um pouco de brutalidade acabaria com as manifestações. Acabaram capturados por filmagens e as filmagens infestaram o YouTube.

O que nos leva à segunda etapa – a publicidade. A imprensa não pôde mais ignorar totalmente as manifestações. Então, tentou ser condescendente. O que esses tolos e ignorantes jovens (e uma e outra mulher mais velha) sabiam de economia? Será que tinham algum programa positivo? Eram “disciplinados”? Fomos informados de que logo as manifestações iriam minguar. O que não era esperado pela imprensa e pelos poderes correntes (parece que eles nunca aprendem) é que o tema do protesto ressoaria de maneira ampla e rapidamente se popularizaria. De cidade em cidade, “ocupações” similares foram iniciadas. Cinquentões desempregados começaram a aderir. Celebridades fizeram o mesmo. O mesmo para sindicatos, inclusive ninguém menos que o presidente da AFL-CIO (Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais). A imprensa de fora dos Estados Unidos começava a cobrir os eventos. Questionados sobre o que queriam, os manifestantes respondiam: “justiça”. Esta começava a parecer uma resposta significativa para mais e mais pessoas.

Vem então a terceira etapa – a legitimidade. Acadêmicos de certa reputação passaram a sugerir que o ataque a “Wall Street” possuía alguma justificação. Repentinamente, a principal voz da respeitabilidade centrista, o New York Times, rodou em 8 de outubro um editorial dizendo que os protestantes tinham realmente “uma mensagem clara e preceitos políticos específicos”, e que o movimento era “mais que uma revolta de juventude.” O Times prosseguia: “Desigualdade extrema é a marca de uma economia disfuncional, dominada por um setor financeiro guiado em grande parte por especulação, trapaça e amparo governamental, tanto quanto por investimentos produtivos.” Linguagem pesada para o Times. Em seguida, o comitê de campanha democrata no Congresso passou a circular uma petição solicitando aos adeptos do partido que declarassem: “Estou com os protestos do Occupy Wall Street”.

O movimento tornara-se respeitável. E com a respeitabilidade veio o perigo – quarta etapa. Um grande movimento de protesto, ao se popularizar, costuma enfrentar duas grandes ameaças. Uma é a organização de significativa contramanifestação de direita nas ruas. Com efeito, Eric Cantor, o linha-dura (e muito astuto) líder republicano no Congresso, já foi convocado. Tais contramanifestações podem ser bastante ferozes. O Occupy Wall Street precisa estar preparado para isso e cogitar a maneira como pretende dominar ou neutralizar a eventual contra-ofensiva.

Mas a segunda e maior ameaça vem do sucesso genuíno do movimento. Conforme ganha mais apoio, ele amplia a diversidade de opiniões entre os manifestantes ativos. O problema aqui, como sempre, é como evitar ao mesmo tempo Cila e Caribdis1. Impedir que Occupy Wall Street torne-se um culto para poucos, que seria levado à derrota por ter bases muito limitadas; ou que, no esforço para atrair mais gente, o movimento perca coerência. Não há fórmula simples para manter-se afastado de ambos os extremos. É difícil.

Quanto ao futuro, pode ser que o movimento tenha força em momentos específicos. De duas coisas ele pode ser capaz. Forçar uma revisão rápida das medidas reais do governo para minimizar a dor aguda que pessoas estão obviamente sentindo. E transformar, a longo prazo, a visão de largos segmentos da população norte-americana sobre as realidades da crise estrutural do capitalismo e as grandes transformações geopolíticas que estão ocorrendo, por vivermos hoje em um mundo multipolar.

Mesmo que o Occupy Wall Street venha a se esgotar por exaustão ou repressão, ele já terá sido bem-sucedido e deixará um legado duradouro, assim como ocorreu com as revoltas de 1968. Os Estados Unidos terão mudado, e em sentido positivo. Como diz o ditado, “Roma não foi feita em um dia”. Construir uma ordem mundial nova e melhor; e um país novo e melhor, são tarefas que requerem esforço contínuo de várias gerações. Mas um outro mundo é de fato possível (embora não inevitável). E nós podemos fazer a diferença. Occupy Wall Street está fazendo a diferença – uma grande diferença.

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