Comparato e a barreira da desigualdade

Fábio Konder Comparato, um dos juristas mais importantes na atualidade, escreveu um esclarecedor artigo sobre as barreiras da desigualdade no Brasil e lançou uma importante pergunta ao novo governo: Terá ele coragem e determinação para atuar em favor da democracia e dos direitos humanos, ou preferirá seguir o caminho sinuoso e covarde da permanente conciliação com os donos do poder?


A ligação entre democracia e direitos humanos é visceral, pois trata-se de realidades intimamente correlacionadas. Sem democracia, os direitos humanos, notadamente os econômicos e sociais, nunca são adequadamente respeitados, porque a realização de tais direitos implica a redução substancial do poder da minoria rica que domina o País. Como ninguém pode desconhecer, sem erradicar a pobreza e a marginalização social, com a concomitante redução das desigualdades sociais e regionais, como manda a Constituição (art. 3º, III), é impossível fazer funcionar regularmente o regime democrático, pois a maioria pobre é continuamente esmagada pela minoria rica.

Acontece que o nosso País continua a ostentar a faixa de campeão da desigualdade social na América Latina, e permanece há décadas entre os primeiros colocados mundiais nessa indecente competição. Em seu último relatório, o Programa das Nações Unidas para o De-sen-volvi-mento Humano (PNUD) mostrou que os setores de mais acentuada desigualdade social, no Brasil, são os de rendimento e educação.

É óbvio que essa realidade deprimente jamais será corrigida simplesmente com a adoção de programas assistenciais do tipo Bolsa Família. Trata-se de um problema global, ligado à estrutura de poder na sociedade. Para solucioná-lo, portanto, é indispensável usar de um remédio também global. Ele consiste na progressiva introdução de um autêntico regime republicano e democrático entre nós. Ou seja, no respeito integral à supremacia do bem comum do povo (a res publica romana) sobre o interesse próprio das classes e dos grupos dominantes e seus aliados. Ora, se a finalidade última do exercício do poder político é essa, fica evidente que ao povo, e a ele só, deve ser atribuída uma soberania efetiva e não meramente simbólica, como sempre aconteceu entre nós.

Para alcançar esse desiderato, é preciso transformar a mentalidade dominante, moldada na passiva aceitação do poder oligárquico e capitalista. O que implica um esforço prolongado e metódico de educação cívica.

Concomitantemente, é indispensável introduzir algumas instituições de decisão democrática em nossa organização constitucional. Três delas me parecem essenciais com esse objetivo, porque provocam, além do enfraquecimento progressivo do poder oligárquico, a desejada pedagogia política popular.

A primeira e mais importante consiste em extinguir o poder de controle, pelo oligopólio empresarial, da parte mais desenvolvida dos nossos meios de comunicação de massa. É graças a esse domínio da grande imprensa, do rádio e da televisão, que os grupos oligárquicos defendem, livremente, a sua dominação política e econômica.

O novo governo federal deveria começar, nesse campo, pela apresentação de projetos de lei, que deem efetividade às normas constitucionais proibidoras do monopólio e do oligopólio dos meios de comunicação de massa, e que exigem, na programação das emissoras de rádio e televisão, seja dada preferência a finalidades educativas, artísticas e informativas, bem como à promoção da cultura nacional e regional.

A esse respeito, já foram ajuizadas no Supremo Tribunal Federal algumas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão. É de se esperar que a nova presidente, valendo-se do fato de que o Advogado-Geral da União é legalmente “submetido à sua direta, pessoal e imediata supervisão” (Lei Complementar nº 73, de 1993, art. 3º, § 1º), dê-lhe instruções precisas para que se manifeste favoravelmente aos pedidos ajuizados. Seria, com efeito, mais um estrondoso vexame se a presidente eleita repetisse o comportamento do governo Lula, que instruiu a Advocacia–Geral da União a se pronunciar, no Supremo Tribunal Federal, a favor da anistia dos assassinos, torturadores e estupradores do regime militar.

As outras duas medidas institucionais de instauração da democracia entre nós são: 1. A livre utilização, pelo povo, de plebiscitos e referendos, bem como a facilitação da iniciativa popular de projetos de lei e a criação da iniciativa popular de emendas constitucionais. 2. A instituição do referendo revocatório de mandatos eletivos (recall), pelos quais o povo pode destituir livremente aqueles que elegeu, sem necessidade dos processos cavilosos de impeachment.

Salvo no tocante à iniciativa popular de emendas constitucionais, já existem proposições em tramitação no Congresso Nacional a esse respeito, redigidas pelo autor destas linhas e encampadas pelo Conselho Federal da OAB: os Projetos de Lei nº 4.718 na Câmara dos Deputados e nº 001/2006 no Senado Federal, bem como a proposta de Emenda Constitucional 073/2005 no Senado Federal. Recentemente, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a proposta de Emenda Constitucional nº 26/2006, apresentada pelo senador Sérgio Zambiasi, que permite a iniciativa popular de plebiscitos e referendos.

Mas não sejamos ingênuos. Todos esses mecanismos institucionais abalam a soberania dos grupos oligárquicos e, como é óbvio, sua introdução será por eles combatida de todas as maneiras, sobretudo pela pressão sufocante do poder econômico. Se quisermos avançar nesse terreno minado, é preciso ter pertinácia, organização e competência.

Está posto, aí, o grande desafio a ser enfrentado pelo futuro governo federal. Terá ele coragem e determinação para atuar em favor da democracia e dos direitos humanos, ou preferirá seguir o caminho sinuoso e covarde da permanente conciliação com os donos do poder?

É a pergunta que ora faço à presidente eleita.

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