O Haiti não é aqui

Que desagradável coincidência. No último texto, sobre os prazeres da audição de uma música inesperada, citei o exemplo de ligar a rádio universitária no meio de um congestionamento e se deparar com a grandeza de uma música como "Haiti", composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil.


Eu mal esperava que justamente lá, na capital Port-au-Prince, algumas horas depois, iria acontecer o maior desastre sísmico da história do país nos últimos duzentos anos, levando milhares de haitianos à morte, bem como membros das Nações Unidas, turistas de diversas nacionalidades e ativistas sociais, como a paranaense Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança, que estava lá para palestrar sobre a experiência brasileira em uma conferência religiosa.

É triste e desesperador. Eu mal consigo imaginar a sensação de ser um haitiano e estar lá, no meio do mais completo caos.

E também fica a sensação estranha de ser um brasileiro, cujo governo controla a Missão de Estabilização das Nações Unidos no Haiti (MINUSTAH) desde o ano de 2004, e nada poder fazer. No interior do Paraná, numa cidade de pensamento provinciano como Maringá, não resta outra opção, a não ser assistir o espetáculo dramático de forma passiva, sendo que a única possível forma de auxílio seria a doação de dinheiro para alguma instituição não-governamental, na qual não se tem a certeza da efetividade, considerando o cenário extremamente confuso de informações e medidas cabíveis.

Outra opção é simplesmente ser um bom contribuinte tributário, esperando que os governos estaduais e federais façam algo, como o envio de equipes de resgate financiadas com o dinheiro público, como já anunciou o governador do Estado do Paraná.

Pois é. É complicado.

O Haiti já tem sua história manchada por desastres políticos e econômicos. Em 1804 tornou-se a primeira nação negra independente do mundo, tendo sido uma das mais prósperas colônias francesas até meados do século XVIII. Entretanto, transformou-se no país mais pobre do hemisfério ocidental, com governos marcados por revoltas, autoritarismo, uso da força e ascensão ao poder de grupos e personalidades interessadas no enriquecimento pessoal à custa do Estado.

De fato, desde a década de 1990, o Haiti ficou conhecido como um "Estado falido", ou seja, quando um governo não detém o monopólio do uso legítimo da força, ficando seu território e sua população sob o jugo de líderes de milícias armadas ou grupos rebeldes. Essa situação legitimou a intervenção internacional no país.

Em dissertação de Mestrado em Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul apresentada em 2009, Mariana Dalalana Corbellini analisa o caso sui generis do Haiti, em trabalho entitulado Haiti: da crise à MINUSTAH.

A leitura, mesmo que parcial sobre o extenso trabalho, ajuda a entender as peculiaridades do Estado haitiano e como se deu a intervenção internacional comandada pelo Brasil nos últimos anos. Eis o resumo:

"O presente trabalho tem por objetivo apresentar as mudanças políticas, sociais e econômicas ocorridas no Haiti entre os anos de 2004 e 2008, desde o estabelecimento de uma operação de manutenção da paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no país. Para que os efeitos da Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (MINUSTAH), como é chamada tal operação, sejam conhecidos, uma análise bibliográfica é realizada. A ela, soma-se a análise de documentos e informações – estes, por sua vez, recolhidos através de trabalho de campo realizado durante viagem de estudos da pesquisadora ao Haiti.

O trabalho apresenta, em um primeiro momento, um panorama da situação haitiana, com vistas à construção de um aporte teórico que possibilite o estudo do caso. Tendo a debilidade estatal como variável explicativa da crise social, econômica e política instaurada no Haiti no ano 2000 – crise esta que embasa a intervenção internacional – o processo de construção do Estado haitiano e a interação entre poder, autoritarismo e cultura da força são abordados. O intuito é demonstrar como essas variáveis se combinam, dando origem à crise e colocando-se como obstáculos à sua resolução. Em um segundo momento, são estudadas as operações de manutenção da paz da ONU como um todo. A ênfase é dada às operações ocorridas no período pós Guerra Fria, devido a seu caráter multidisciplinar, do qual a MINUSTAH é representante. Neste ponto, são analisados os desafios impostos pelas mudanças ocorridas no mecanismo, com vistas à sua equiparação posterior ao caso haitiano. Por fim, em um terceiro momento, a Missão de Estabilização das Nações Unidas é estudada em maior profundidade; determinando-se seus antecedentes e condicionantes, para que, em seguida, sua atuação durante os primeiros quatro anos seja analisada.

Através deste trabalho, é possível perceber a importância da presença da MINUSTAH em território haitiano. A missão teve, de fato, papel relevante para o alcance e a manutenção de um ambiente estável e seguro no país, além de ter proporcionado oportunidades de diálogo político entre as partes conflitantes. No entanto, muitos ainda são os obstáculos que se impõem ao sucesso da missão, não apenas nos quesitos securitários e políticos, mas principalmente no que diz respeito aos desafios sociais e econômicos impostos ao Haiti."

Fiz questão de pesquisar um trabalho acadêmico sobre o tema e compartilhá-lo (a tese está disponível no portal do governo federal chamado domínio público), pois sinto que a academia deve estar em constante diálogo com o meio não-acadêmico. Caso contrário, qual é a função da universidade, senão gerar e disseminar conhecimento? Uma pesquisa como essa, realizada com extensa fundamentação teórica, deve servir para informar a todos sobre a situação político/econômica do país - justamente na hora em que os olhos da nação se voltaram ao Haiti, mesmo que estimulado por uma catástrofe natural sem precedentes.

Creio que muito vai ser discutido e conseqüentes ações sociais serão mobilizadas mundo afora.

Enquanto isso, milhares tentam respirar em meio aos escombros. Ao mesmo tempo em que ruas estão tomadas por medo, dor, violência e caos.

This is our world.


3 comentários:

  1. fora as catástrofes naturais muitas coisas nos aproximam

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  2. Muitas coisas nos aproximam, definitivamente.

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  3. Falou e disse, caro Zanatta. Não consigo imaginar o que significa tanta gente morta e morrendo ao mesmo tempo. Hoje, no Bom dia Brasil, assistindo a cenas lamentáveis de pessoas lá no Haiti brigando por comida, a única associação que consegui fazer com aquela barbárie foi com o livro e, porteriormente filme, "Ensaio sobre a cegueira".

    Sobre a aproximação da academia com a sociedade, também tocastes num assunto interessante. Como queria, por exemplo, que as pessoas pudessem consumir e, assim, aprender e apreender, com os trabalhos monográficos desenvolvidos por minha turma de Jornalismo este ano. Cada coisa interessante que, infelizmente, só será lida pelos próprios alunos e pelos professores orientadores. É lastimável.

    Me adiciona no msn pra gente conversar mais: wilameprado@hotmail.com

    Abração.

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