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23 de fevereiro de 2011

O povo grego contra os planos de austeridade

Agora a noite vi uma foto chocante, tirada por Angelos Tzortizinis da Agence France-Presse. A imagem é essa aqui:


É uma cena perturbadora. Não é fácil ver uma pessoa queimando, ainda mais com uma roupa pesada e um capacete, tal como esse policial. E é ainda mais perturbador saber que esse policial - mero agente do Estado grego - é apenas um trabalhador (provavelmente mal pago) que acabou sendo alvo da fúria de seus compatriotas em razão da crise de ingovernabilidade e das tentativas do governo grego de impor à população  um severo plano de austeridade econômica que implica na massiva redução dos investimentos públicos, cortes em aposentadoria e serviços sociais e o compromisso de retorno do investimento financeiro aplicado no país ao Fundo Monetário Internacional.

A Grécia vive uma guerra civil. E essa guerra não é de agora. A greve geral de hoje (23/02/11), aderida por mais de 100.000 trabalhadores em Atenas, é apenas mais uma das diversas que tem ocorrido desde o início do ano passado. Em maio do ano passado, num confronto que gerou a morte de três pessoas, escrevi: "A Grécia passa por um grave déficit orçamentário causado por excesso de gastos na última década (2000-2010), realizando diversos empréstimos sucessivos para manutenção dos gastos públicos. A dívida está em torno de 300 bilhões de euros e a possibilidade de moratória assustou os investidores estrangeiros. O 'Plano de Austeridade' firmado entre o governo, o FMI e a União Europeia, causou revolta na população por implicar em congelamento dos salários, extinção do décimo terceiro, corte dos fundos de pensão e aumento de impostos à longo prazo para recuperação financeira do país, com a manutenção do Euro. Na manhã de hoje (05/05), manifestantes lançaram um coquetel molotov dentro do Banco Marfin, no centro de Atenas, provocando um grave incêndio que ocasionou a morte de três cidadãos gregos. Após as violentas manifestações de hoje, o presidente de Grécia, Carolos Papoulias, disse que o país 'chegou à beira do abismo'".

Hoje, a British Broadcasting Company (a famosa BBC) noticiou o protesto dos trabalhadores gregos e explicou de forma sintética o que está gerando a grave crise no país: "Esta é a primeira grande manifestação de trabalhadores em 2011 na Grécia. Desde o ano passado, o governo do país implanta o plano de austeridade com cortes de empregos. O plano foi uma exigência para o país receber ajuda internacional de 110 bilhões de euros (cerca de R$ 250 bilhões) do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da União Europeia (UE). Desde então, o governo do primeiro-ministro socialista George Papandreou iniciou o corte de gastos e aumento de impostos para reduzir suas dívidas. Uma série de greves gerais ocorreram na Grécia em 2010 enquanto o governo do país iniciava a implantação do plano de austeridade que ainda vai durar vários anos. Em 2011 o governo iniciou um esforço especial para combater a sonegação de impostos, apontada como uma das causas do déficit. O governo grego informou que espera que a economia encolha 3% em 2011".

Entretanto, o que me chama atenção é que os jornais não vão à fundo e não citam os verdadeiros motivos da revolta dos gregos contra o governo "socialista" de Papandreu. Pouco se fala da pressão exercida pela União Europeia, pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetário Internacional para que haja uma ampla reforma no direito trabalhista grego, no direito tributário e no direito previdenciário.

Toda essa raiva e indignação não é imotivada. Essas pessoas que lotam a frente do Parlamento grego não são "baderneiros" ou "jovens comunistas", mas sim pais e mães, operários, empresários, professores, médicos, advogados, comerciantes e engenheiros. São pessoas comuns que não suportam as "medidas bárbaras" já aprovadas e aquelas outras virão a seguir.

No que consiste, portanto, a transição do Welfare State para uma espécie de Bancocracia na Grécia?

Vejamos as mudanças ocorridas no país através do plano de austeridade aprovado em Março, chamado pelo Partido Comunista Grego (KKE) de "reformas anti-povo":
- Abolição do Natal, Páscoa e o subsídio de férias para trabalhadores da função pública e para todos os pensionistas tanto no setor privado como no público. 
- Corte nas dotações salariais para os trabalhadores da função pública em 20%. 
- Congelamento dos salários e pensões no setor privado e no público durante os três anos seguintes. 
- Redução dos salários dos trabalhadores em empresas de água, gás, telefone e electricidade, os quais não recebem quaisquer subsídios, em 10%. 
- Imposição de cortes de 3% a 10% nas pensões acima de 1400 euros. 
- Cancelamento do pagamento da segunda prestação do "subsídio de solidariedade" destinado aos segmentos mais pobres da população. 
- Aumento das taxas de IVA duas vezes em 2010. 
- Aumento de três vezes em 2010 do imposto sobre o consumo de combustíveis. Em consequência, o preço da gasolina sem chumbo aumentou em 63%. 
- Aumento de três vezes em 2010 do imposto sobre o consumo de bebidas alcoólicas e tabaco. Após a aplicação das medidas o preço dos cigarros aumentou 40% em relação ao princípio de 2010. Em relação às bebidas o aumento chegou a 3 euros por garrafa. 
- Imposição de tributação extra sobre profissionais com base nas suas receitas em 2009. 
- Aumento da idade da reforma para 40 anos de contribuições. Abolição da reforma com 37 anos de contribuições sem ter em conta a idade bem como a reforma com 35 anos de contribuições e idade estabelecida. 
- Imposição de cortes drásticos sobre pensões (mais de 35%) por meio da extensão dos anos ao longo dos quais a base de ganhos pensionáveis é calculada dos melhores 5 dos últimos 10 anos de ganhos para os ganhos ao longo de toda a vida. 
- Abolição da pensão de reforma antes dos 60 anos, por meio da abolição da reforma antecipada, afetando acima de tudo mães de crianças pequenas e aquelas que têm mais de três filhos. 
- Redução dos ganhos das pensões em 6% por ano para aqueles que têm 40 anos de contribuições e "ousam" reformar-se sem chegarem à idade de 65 anos. 
- Demolição do sistema de pensão dos trabalhadores da função pública pela transformação da Segurança Social pública em profissional. 
- Imposição às mulheres trabalharem 5 a 17 anos a mais em nome da sua "igualização" com os homens. 
- Introdução da instituição do "ajustamento de pensões à expectativa de vida", o que abre caminho para trabalhar até à idade de 70 anos. 
- Introdução da instituição da "pensão testada média" que é igual a um subsídio de previdência e não é garantia antes da idade dos 65 anos. 
- Redução drástica da despesa do Estado com pensões as quais cobrem meramente a pensão testada pela média. Isto é, abolição do financiamento em três partes do sistema de Segurança Social. 
- Fundição dos fundos de pensão em três fundos. 
- Abolição dos Acordos Coletivos de Trabalho e o salário mínimo. Aprovação de legislação para níveis salariais mínimos na entrada de jovens e de desempregados de longa duração. 
- Abolição do salário mínimo. 
- Abolição da jornada de trabalho de 8 horas e redução da remuneração por horas extras. Aprovação da introdução de "limites anuais para a organização do tempo de trabalho". Portanto, os trabalhadores são obrigados a trabalhar horas extras num período e a seguir ficarem desempregados ou terem feriados compulsórios. Pelo período de horas extras de trabalho os trabalhadores não receberão o pagamento adicional que se aplica atualmente. 
- Aumento do patamar de dispensa (redundancy) para empresas que tenham 21-200 empregados. 
- Imposição de cortes drásticos sobre pagamentos de dispensas que montem a 50%.

Essas são as reformas já aprovadas (e que geraram os violentos protestos dos trabalhadores em Atenas, que buscam revogar tais medidas). A expectativa do governo é que durante essa década (2011-2020) a Grécia possa retomar o crescimento econômico através do incentivo ao investimento externo, em evidente detrimento dos direitos sociais e trabalhistas.

Mas a questão é: conseguirá o governo grego explorar a massa trabalhadora e anular seus direitos sociais sem gerar o completo caos?

A tabela abaixo expõe o nível de desconfiança do mercado em relação ao pagamento da dívida externa de alguns países europeus. Como se vê, a instabilidade grega - gerada em grande parte pela resposta da população em relação aos planos de austeridade - está criando um efeito contrário: detentores de créditos da dívida pública desconfiam que o país seja capaz de cumprir com suas promessas e investidores não acreditam que investir no país seja um bom negócio.


O governo grego tenta aprovar novas medidas, com o objetivo de tributar (ainda mais) produtos e serviços e reduzir os gastos públicos. O que isso significa? Significa que, conforme o velho ditado, "a corda estoura sempre para o lado mais fraco", e quem "pagará o pato" será a classe trabalhadora - não há dúvidas.

Trata-se, portanto, de protestos completamente diferentes daqueles dos povos árabes do norte da África. Não se questiona aqui a legitimidade de um regime democrático, mas sim um "golpe traiçoeiro" dado pelo partido "Movimento Socialista Pan-Helênico", o PASOK, eleito democraticamente em 2009.

Ironicamente, um dos slogans do partido era "A Grécia é para os Gregos". Mas o que parece mesmo, de acordo com as ações conduzidas pelo sociólogo e Primeiro-Ministro Geórgios Papandréu, é que a Grécia é para o capital.

É claro que não se pode culpar o governo de Papandréu pela crise. Afinal, assumiram o país já arruinado em razão da má-administração da máquina estatal por governantes anteriores.

Qual seria a solução então? Aceitar os planos de austeridade criados pelas instituições internacionais?

Num discurso recente, o líder do Executivo grego negou que se trata apenas de austeridade econômico. Para ele, trata-se de responsabilidade democrática. "Eles dizem austeridade econômica, nós dizemos responsabilidade democrática. O que implica a responsabilidade democrática? Sim, precisamos controlar os défices excessivos e controlar as crescentes dívidas públicas. Mas não podemos construir uma economia mais forte, mais segura e mais saudável para os nossos cidadãos simplesmente com cortes maciços nos gastos do governo e serviços sociais. Keynes, há 70 anos, enterrou o dogma reacionário por trás do corte da despesa pública, quando o setor privado falha. Na verdade, ele provou conclusivamente que a economia poderia permanecer trancada em estagnação por anos, sem grandes gastos públicos. E foi mesmo a aplicação de Keynes pelos governos conservadores que enfraqueceu os efeitos negativos da recente recessão global. Responsabilidade significa, sim, colocar ordem na sua casa fiscal, mas também ter certeza que a economia cresce. Esta não é uma questão de um contra o outro. É muito mais uma questão, como os gregos antigos diziam, de medida. Todas as coisas na medida".

Se se trata de responsabilidade democrática, fica então uma pergunta final. É isso que o povo (do grego demos) quer?

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