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20 de fevereiro de 2011

Primavera Árabe e Crise Sistêmica Global

Me desculpe se você entrou no blog para ler algo bacana e divertido, mas é que os acontecimentos globais não me deixam com o espírito leve. Não dá pra ignorar tudo o que está acontecendo a cada dia mundo afora, ainda mais quando se trata de centenas de civis morrendo por justiça social e democracia.

Sei que estamos numa boa aqui no Brasil (aliás, estamos mesmo? Quem está?), mas seria estupidez não refletirmos sobre as causas e efeitos da primavera árabe (emprestando a expressão que ouvi do amigo Gilberto Kalil) e o que tudo isso importa para a humanidade. Acredito, sinceramente, que tudo que estamos vivendo - com um elevado grau de distanciamento - estará nos livros de história das próximas gerações. Aliás, teremos a oportunidade de ler de forma sintética sobre isso quando formos ajudar nossos filhos a estudar - imagine você a cena.

Bom. Eu não pretendo aqui fazer um balanço geral dos fatos. Seria muito desgastante e eu não tenho competência pra isso. Entretanto, acho válido levantar algumas questões.

1. Em diversos textos anteriores, escrevi que estava impressionado com o grau de "organicidade" das revoltas tunisianas e egípcias, isto é, que essas revoltas eram explosões espontâneas mobilizadas por civis comuns, sem nenhum partido (liberal/comunista/fundamentalista) por trás, e que simplesmente objetivavam o fim da repressão ditatorial e o início de um regime democrático - que garanta um mínimo de dignidade existencial e participação nas decisões políticas aplicáveis a todos. Até aí tudo bem. Mas a questão que se coloca é: a gestão pós-revolução será democrática e atenderá a esses anseios populares? Como se dará a transição a esse suposto regime democrático? O Conselho Superior Militar (atualmente exercendo o poder soberano) destes países irá instrumentalizar formas de participação popular ou cederá às pressões dos invisíveis grupos econômicos ou de outros Estados interessados em riquezas (materiais e naturais) locais?

2. Outro dia, li que Hilary Clinton havia declarado total apoio aos protestos pró-democracia no Irã e que não mediria esforços para "ajudar o povo iraniano". Muito bem. Sabe-se que a República Islâmica do Irã cinicamente estava louvando os democratas do Egito enquanto ameaçava executar seus próprios líderes democráticos opositores, mas uma possível intervenção estadunidense não seria uma falsa ajuda democrática com interesses econômicos e políticos ocultos? Quem são os verdadeiros beneficiados num possível apoio dos Estados Unidos? A hipocrisia estadunidense parece não convencer. Como denunciou Robert Fisk: "Barack Obama e Hillary Clinton se esmeraram para dar uma pirueta mais rara. Havendo apoiado originalmente as 'estáveis' ditaduras do Oriente Médio – quando deveriam estar ao lado das forças democráticas -, decidiram avalizar as reivindicações da democracia civil no mundo árabe justamente quando os árabes estão tão desencantados com a hipocrisia ocidental que não querem os Estados Unidos do seu lado. 'Os norteamericanos interferiram em nosso país por 30 anos durante a era Mubarak, apoiando este regime e armando seus soldados', me disse a semana passada um estudante egípcio na praça Tahrir. 'Agora ficaríamos agradecidos se deixassem de interferir do nosso lado', acrescentou. Ao final da semana, escutei as mesmas vozes em Bahrein. 'Estavam nos baleando com armas estadunidenses e montados em tanques estadunidenses', afirmou um médico na quinta-feira. 'E agora Obama quer ficar do nosso lado?'

3. De que forma a ebolição árabe está relacionada com a queda dos regimes que dependem de Washington para a sua sobrevivência? A falha nas estratégias de repressão popular (tão bem arquitetadas e geridas durante as décadas de setenta, oitenta e noventa) não estaria diretamente ligada com o declínio do império norte-americano, deflagrado após a crise de 2008? Não seria esse um primeiro reflexo da crise sistêmica global?

"Manifestação", de Antonio Berni

Hoje, lendo o Global Europe Anticipation Bulletin (GEAP) nº 52, publicado pelo Laboratoire Européen d'Anticipation Politique, me deparei com uma interessante correlação estabelecida entre os acontecimentos no mundo árabe e a Queda do Muro de Berlim. Para os economistas franceses do GEAP, o que está ocorrendo nos últimos meses é um sinal claro de uma outra queda, a "Queda do Muro Petro-Dólar" (Mur des pétro-dollars). Assim, tal como o muro construído pelo regime da Alemanha do Leste, no contexto mais geral da "Cortina de Ferro", para separar o bloco comunista do ocidente, há um outro "muro" em vias de cair no mundo árabe. Mas, afinal, quem o construiu? E com que fim?

Segundo o relatório europeu, as respostas são claras: "Este 'muro' foi construído por cada um dos ditadores (ou regimes) árabes da região a fim de assegurar a manutenção do seu monopólio sobre o poder e as riquezas do país, evitando todo risco de questionamento do seu partido único ou da sua legitimidade dinástica (para os reinos)". Da mesma forma, "este 'muro' integrava-se no dispositivo mais geral estabelecido por Washington para preservar o seu acesso preferencial (e em dólares dos EUA) aos recursos petrolíferos da região e preservar os interesses de Israel. A integração avançada do aparelho militar e de segurança destes países (salvo a Síria e o Líbano) com o dispositivo de defesa dos Estados assegura(va) um apoio americano sem falha e permite(ia) aos respectivos dirigentes árabes beneficiarem de prebendas de toda espécie sem risco de serem postos em causa por forças internas ou externas".

Para o LEAP, os acontecimentos atuais no mundo árabe são, antes de tudo, a tradução regional das tendências de fundo da crise sistêmica global e, em particular, do deslocamento geopolítico mundial. Nesse ponto de vista, eles afirmam: "estimamos em particular que o fim de 2011 será marcado pelo que a nossa equipe chama a 'Queda do muro dos petro-dólares' que gerará imediatamente um choque monetário-petrolífero de grande porte para os Estados Unidos".

A mensagem dos pensadores franceses é direta e merece atenção: as elites ocidentais, e os seus clones das diferentes regiões do mundo, continuam a afundar nos holzweg (caminhos errados da História), caminhos florestais que não levam a parte nenhuma.

Entretanto, como bem disse Martin Heidegger em suas reflexões sobre o ser, é preciso ter a humildade de estar constantemente à escuta da floresta e dos seus sinais.

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