Como gerar conflitos e enraivecer pessoas: o caso da lista de presença

Há algum tempo desconfio que sou persona non grata no bloco D-34 da Universidade Estadual de Maringá - um fato que me entristece, pois tenho dedicado grande parte de meu tempo, nos últimos cinco anos, para melhorar algumas coisas no curso de Direito, seja através de ações institucionais (como quando fiz parte do Centro Acadêmico por duas gestões), diálogos ou críticas.

Ontem (sábado), sem querer, acabei contribuindo ainda mais para a construção de uma imagem negativa de minha pessoa entre os colegas de cursos. As reações de um único ato chegaram a extremos, como sentimentos de ódio e mensagens anônimas de pessoas que esperam que eu "apanhe como um cachorro".

Bom. Deixe-me explicar em detalhes o que ocorreu.

Existe uma disciplina da nova grade curricular do curso (implantada em Dezembro de 2009) que se chama Prática de Ética. Ela está dividida em três módulos, aplicáveis aos três últimos anos do curso de graduação em Direito.

O grande problema é que tal disciplina não conseguiu ser implementada na prática, em razão de diversos fatores (incompatibilidade na carga horária, falta de professores e metodologia de ensino). A solução que o Escritório de Aplicação do Direito (EAD) encontrou foi a de promover palestras sobre ética com diversos profissionais da área: advogados, promotores e juízes.

Na manhã de ontem tivemos mais uma dessas palestras correspondentes à aula prática de Ética. O convidado da vez foi o Juiz Federal, Dr. Anderson Furlan - que, inclusive, já foi acadêmico da casa na década de noventa.

Bom. Tudo ia bem. O auditório estava lotado e via-se o esforço de alguns acadêmicos que tinham ido direto da festa Galo em Gala - uma confraternização da Atlética de Direito que rolou sexta-feira em comemoração aos cinco anos da associação - direto para a aula. Tinha até gente de terno, ressaca e óculos escuros. E mais: tinha gente que iria fazer uma prova de História do Direito e que estava lá presente.

Na palestra, Furlan falou sobre o Código de Ética da Magistratura Nacional (implantado em 2008 em razão do esforço do Conselho Nacional de Justiça), teceu comentários sobre os Princípios de Bangalore e compartilhou parte de sua experiência como Juiz Federal em Maringá e os conflitos éticos que surgiram em razão de seu cargo público.

A palestra atingiu seu objetivo: expôs, de maneira informal (Furlan disse logo no início que a palestra deveria ser vista como se fosse um programa Inside the Actors Studio, do James Lipton), as normas que regulam as condutas éticas dos magistrados e os problemas práticos éticos, vistos a partir da perspectiva de um magistrado.

No final, o Prof. Paulo Roberto - que estava coordenando os trabalhos da mesa - deu oportunidade aos acadêmicos para debater o tema ética e formular algumas perguntas ao palestrante do dia. Como de costume, praticamente toda a platéia deixou o auditório, restando apenas aqueles interessados em discutir alguns tópicos relacionados à ética.

Enquanto o colega Marcelo Candeloro fazia a primeira pergunta ao Dr. Furlan, olhei para o meu caderno e verifiquei as anotações que tinha feito ao longo da palestra, buscando alguma dúvida sobre o tema. Nesse momento, surgiu  uma questão: seria a conduta ética algo a ser atingido pela formação ou pela coerção?

Fiquei pensando na melhor forma de colocar tal pergunta, enquanto outro colega, Fernando Lopes, fazia algumas colocações sobre recursos no Novo Código de Processo Civil. Neste momento, ainda pensando em como fazer a pergunta que me inquietava, lembrei duma cena particular: a imagem de muitos colegas assinando a lista de presença em nome de outras pessoas (inclusive pegando o número do Registro Acadêmico através de mensagens de texto via SMS) que ali não estavam. Surgiu-me então uma luz: Pronto! Está aí a ilustração ideal para mostrar a incompatibilidade entre discurso e prática na ética e fazer minha pergunta!

Quando o Juiz Federal terminou de responder a pergunta do Fernando, formulei a seguinte questão, de pé: Enquanto assistíamos a sua palestra sobre ética, alguns de meus colegas assinaram a lista de presença do evento com o nome de outras pessoas que não estavam aqui, o que demonstra uma incompatibilidade entre razão e prática ou mesmo uma razão cínica de nossa parte. Tomando esse exemplo a título ilustrativo, como o senhor vê a questão da efetividade das condutas éticas? Seria uma questão de formação ou coerção? Normas coercitivas são suficientes com relação à condutas éticas?

Ele respondeu que a questão ética é fundamentalmente uma questão coercitiva, pois assume uma premissa hobbesiana de que a cooperação só existe para o benefício próprio e que os valores éticos devem estar normatizados pelo Estado, que tem força coercitiva.

Eu repliquei, pois discordo. Questionei se não era possível repensar o paradigma moderno da ética individualista assumindo duas linhas de pensamento: a teoria da ação comunicativa de Habermas (articulação de valores e elaboração de normas através da comunicação e da linguagem por todos os sujeitos num Estado Democrático) e a ética da alteridade de Levinas (alteridade como fundamento primeira da ética, isto é, abertura e promoção da relação com o Outro).

Furlan treplicou, refutando meus argumentos. Disse que tal proposição não seria habermasiana ou levinasiana, mas sim kantiana, pois este é o conceito de ética a partir do imperativo categórico de Kant: toda pessoa deve agir conforme os princípios que ela quer que todos os seres humanos sigam, tornando-se lei universal da natureza humana. Novamente, ele reassumiu seu posicionamento hobbesiano e disse que era preciso ter normas bem definidas sobre condutas éticas.

Outras pessoas fizeram mais perguntas (sobre outros temas) e a discussão seguiu por mais alguns minutos.

Eu estava feliz com a resposta de Furlan. Queria saber se ele optava pela formação ou coerção e ficou claro que ele crê na coerção como melhor forma de garantir a efetividade de condutas éticas na sociedade. A questão da lista de presença era só uma ilustração para nossa discussão teórica e ela nem foi comentada pelo palestrante. Afinal, minha pergunta era clara: a conduta ética é atingida pela formação subjetiva ou coerção estatal?

Mas, no final, o cenário mudou e minha constatação acerca da incompatibilidade entre discurso ético e ação ética com relação à lista de presença ganhou contornos para além do âmbito da discussão acadêmica.

Antes de encerrar o evento, foi avisado que aqueles que tinham assinado a lista em nome de outros teriam até quinta-feira (02/12) para se retratar e excluir o nome daquele que não estava presente no evento, sob pena de se incorrer em crime de falsidade ideológica. Ainda, foi dito que tais alunos seriam responsabilizados administrativamente.

Poucos acadêmicos estavam lá durante o recado. Os que estavam, presenciaram o clima tenso que se instaurou perante tais advertências.

Somente neste momento me dei conta das proporções que meu comentário ganhou. O que era ilustração de um debate sobre ética tornou-se, para todos, uma denúncia. E pior: de um acadêmico contra os acadêmicos.

Não tardou muito para surtirem os primeiros efeitos. Minutos após o término da palestra, diversos colegas começaram a ligar uns para os outros, os quais rapidamente se dirigiram novamente até o anfiteatro. O Robson - amigo do noturno - gentilmente me ofereceu uma carona, e logo alertou: Acho melhor você sair escoltado, Zanatta.

No caminho do carro, um veículo passou por mim e uma voz surgiu de dentro do automóvel: Valeu, Zanatta! - Era claro o tom de ironia.

Cheguei em casa e liguei o computador para ver uns e-mails antes do almoço. Aproveitei e liguei o MSN. Segundos após ligar o messenger, uma colega veio falar comigo. Disse que estava completamente chateada com minha atitude e que esperava alguma ação de minha parte pra reverter o quadro de ameaças e tensão. Eu tentei explicar os fatos ocorridos, mas não consegui. O desespero tomou conta de minha colega, que não conseguia nem almoçar com a ideia de que poderia não se formar por um processo administrativo, ocasionado por ter assinado a lista em nome de uma pessoa que tinha saído um pouco antes que ela.

A situação tornou-se caótica. Iniciou a bola de neve do telefone sem fio: pessoas que ficaram sabendo da advertência começaram a ligar para outras pessoas ou avisar pela internet, mesmo não estando até o final e presenciando o ocorrido.

Hoje, cheguei a receber um comentário anônimo com um tom violento: "é manolo, quem mando abri a boca quando não devia na palestra, tomara que tu apanhe que nem um cachorro naquele bloco".

Além desta manifestação raivosa, fui abordado por diferentes colegas de sala novamente no messenger, que me acusavam de delator. Um deles chegou a falar que minha responsabilidade é objetiva, independente da minha intenção ao fazer o comentário das listas.

Mas afinal, o que isso tudo demonstra?

Eu ainda não sei. Estou processando as informações e as diversas reações.

Mas uma coisa é fato: não quis denunciar ninguém, nem delatar certas pessoas. Não sou desse tipo. Quem me conhece, sabe que sou uma pessoa que adora debater temas teóricos, como por exemplo a ética. O comentário (infeliz) tinha um único propósito: ilustrar uma pergunta ao palestrante.

Não esperava os resultados dele e confesso que tenho esse defeito: faço as coisas sem pensar nas conseqüências para os outros (o que demonstra que tenho muito o que aprender sobre alteridade).

Estou à disposição para resolvermos isso (nós todos) da melhor forma possível.

Sei que é demais pedir compreensão, mas mesmo assim o faço. Farei minha parte para resolver esse conflito.

Podem contar comigo.

Um comentário:

  1. Pessoal, refleti bastante sobre os comentários aqui publicados. Obrigado por se expressarem. Foi uma grande catarse para todos e acho que amadureci bastante (em apenas dois dias) com toda a discussão.

    A vida tem desses momentos de tensão, dor e crescimento.

    A discussão não tem mais porque continuar. As coisas já estão se resolvendo.

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