Uma Constituição para os investidores estrangeiros?


O pacto social da Constituição Federal de 1988 está em xeque. Não há dúvidas sobre isso.  A Proposta de Emenda Constitucional nº 241, agora rebatizada de PEC nº 55/2016, propõe um "novo regime fiscal" ao Brasil e define, em linguagem técnica e enigmática para a maior parte da população, limites para as "despesas primárias" da União.

A proposta causa arrepios em qualquer cidadão com formação mínima em economia política:  seu objetivo é modificar a Constituição para impedir que as despesas primárias -- como os gastos em políticas federais em educação e saúde -- sejam superiores à inflação do ano fiscal anterior. E tem mais: o congelamento das despesas primárias tem duração de 20 anos.

Como bem sintetizou um colunista do New York Times, "um governo não eleito está propondo o congelamento dos gastos públicos por 20 anos". O Brasil não é para amadores, como diz um velho mentor.

O que querem mudar na Constituição?
A proposta é confusa para uma pessoa sem treinamento jurídico. Ela vem mascarada em uma linguagem economista e propõe mudanças ardilosas. É importante ressaltar que não se trata de um projeto de lei convencional, mas sim uma proposta de emenda constitucional.

Em segundo lugar, propõe uma modificação no "Ato das Disposições Constitucionais Transitórias", que é uma espécie de "capítulo adicional" da Constituição, de vigência temporal limitada, constantemente utilizado na cultura constitucionalista brasileira para regular questões de exceção.

É importante ressaltar esse aspecto. Não é normal realizar constantes modificações nas disposições constitucionais transitórias, como tem ocorrido no Brasil. Originalmente, esse instituto foi criado para estabelecer normas de transição, relacionadas a uma nova ordem constitucional. Conforme explica um celebrado professor de direito constitucional, José Afonso da Silva (Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 2008, p. 204):

As normas das disposições transitórias fazem parte integrante da constituição. Tendo sido elaboradas e  promulgadas pelo constituinte, revestem-se do mesmo valor jurídico da parte permanente da constituição. Mas  seu caráter transitório indica que regulam situações individuais e específicas, de sorte que, uma vez  aplicadas e esgotadas os interesses regulados, exaurem-se, perdendo a razão de ser, pelo desaparecimento do objeto cogitado, não tendo, pois mais aplicação no futuro.

A situação brasileira parece ser a seguinte: o governo pretende instaurar uma nova ordem constitucional sem precisar criar uma nova Constituição por meio de um processo político constituinte. Os arquitetos dessa nova ordem encontraram uma forma para isso: modificar as disposições transitórias para criar um novo regime fiscal e definir tetos para os gastos públicos.

Sem qualquer legitimidade democrática -- que, no limite, poderia ser obtida por uma nova constituinte ou até mesmo por um plebiscito sobre a necessidade de tais normas constitucionais de exceção --, o governo Temer propõe um rigoroso controle de despesas primárias que afetará os gastos do governo federal com as áreas de saúde e educação (o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União [...] vigorará por 20 exercícios financeiros, existindo limites individualizados para as despesas primárias de cada um dos três Poderes, do Ministério Público da União e da Defensoria Pública da União).

Os limites são definidos de modo escalonado tendo como base a variação do IPCA (ver nota do Banco Central), um índice de preços que agrega e representa preços de determinadas cesta de produtos para consumidores, medindo a variação do custo de viga de segmentos da população (taxa de inflação ou deflação). O IPCA é medido pelo IBGE e é considerado o "medidor oficial da inflação do país". Na retórica do governo Temer, as áreas de saúde e educação deverão investir, no mínimo, de acordo com a variação da inflação. Na retórica da oposição, a imposição do teto geral implicará em escolhas trágicas de onde cortar, resultando, sempre, nos cortes em políticas sociais. Um vídeo produzido pelo MTST e narrado por Gregório Duvivier aprofunda esse argumento:


O senador paranaense Roberto Requião, do próprio partido de Michel Temer (PMDB), afirmou que a "PEC 241 é um golpe na Constituição de 1988". Em um discurso no Senado Federal realizado em 18 de agosto, Requião fez um ataque frontal aos planos de Meirelles e afirmou que a PEC 241 era a medida "mais idiota e mais desumana" da história política brasileira.

Há muito tempo, Requião e outros políticos têm denunciado o modo unilateral e impositivo que algumas lideranças do PMDB têm forçado a implementação do programa Uma Ponte para o Futuro -- um documento "cuja essência consiste em garantir o pagamento dos juros da dívida pública aos bancos às custas dos gastos com educação, saúde e programas sociais do governo", nas palavras de Ruy Braga. Somente agora, os brasileiros estão prestando a devida atenção ao significado dessa proposta de reforma constitucional e às teorias falaciosas que a sustentam.

Não há outro assunto mais importante que esse, considerando a compra de votos na Câmara dos Deputados e o envio da PEC para o Senado -- algo denunciado por Alessandro Molon. Para Pablo Ortellado, precisamos discutir incansavelmente os efeitos perversos dessa limitação financeira para efetivação de direitos sociais no Brasil.

O plano de Meirelles e a negociação com as elites financeiras
É crucial notar que a Proposta de Emenda Constitucional estava pronta no momento do golpe parlamentar de Dilma Rousseff. Essa não é uma grande novidade, considerando as denúncias de opositores dentro do PMDB -- como Roberto Requião, um crítico do programa Uma Ponte para o Futuro -- e o pronunciamento de Temer para investidores estrangeiros nos Estados Unidos no mês passado.

Michel Temer não teve vergonha alguma ao afirmar que Dilma foi destituída pois se recusou a implementar uma nova agenda de privatização e criação de um novo regime fiscal no final de 2015. A partir das articulações de Moreira Franco e José Serra, políticos da elite alinharam um discurso consensual em favor do referido programa. Coube a Henrique Meirelles -- o economista que fez carreira no Bank of Boston e um dos homens de confiança do mercado financeiro global -- apresentar o plano que está avançando no Congresso.

Os benefícios para os mercados financeiros são evidentes. Com um controle fiscal rigoroso e um congelamento dos gastos públicos, há maior segurança jurídica para cumprimento de obrigações assumidas por meio de emissão de títulos da dívida pública. Assim, o maquinário das finanças públicas roda azeitado. Investidores compram tais títulos a partir de uma taxa de juros elevada. E dormem tranquilos ao saber que, daqui dez anos, haverá cumprimento de tais obrigações sem a possibilidade de expansão dos gastos com políticas sociais.

Quais as alternativas para o problema dos gastos excessivos?
Fundamental esclarecer que narrativa do "precisamos aprovar a PEC a qualquer custo" é falsa. O país não vai quebrar de imediato. Como destacado em diversos debates públicos pela economista Laura Carvalho (FEA/USP), se o problema fundamental do Brasil é do adequado balanço entre receitas e despesas, então existem diversas alternativas nas mãos das lideranças políticas, como:
(i) revisão da política de desoneração fiscal criada nos últimos 12 anos e que gerou uma disputa interminável entre "quais grupos serão beneficiados", diminuindo a receita fiscal brasileira;
(ii) redesenho do sistema tributário brasileiro e implementação de um regime verdadeiramente progressivo, com enfoque na tributação por renda e desoneração dos tributos em serviços e consumo; e
(iii) investimento em infraestrutura física e social para crescimento das relações produtivas e aumento das receitas.

As elites, no entanto, mascaram completamente essa discussão. Como destacado pele professor Jessé Souza -- um dos cientistas sociais mais importantes desta geração --, há um silenciamento proposital dessas alternativas e de outra, também prometida na Constituição: a taxação de grandes fortunas e heranças. Trata-se de uma modelagem política da discussão pública. Fala-se de crise e de situação inevitável. Ocultam-se alternativas que repensam a questão do excesso de gastos de modo contextualizado com a questão maior da estrutura dos sistemas produtivos no Brasil e as injustiças do nosso sistema tributário.

O momento é muito delicado e merece discussões mais profundas. O governo iniciou uma verdadeira campanha midiática de massas para conseguir apoio popular para a PEC 55. As narrativas de apoio ao projeto estão na televisão, nos principais jornais do Brasil, nos aeroportos e rodoviárias. Isso não significa, no entanto, que exista legitimidade democrática para essa proposição. Flavio Marques Prol, em artigo para o jornal jurídico Jota, foi preciso neste ponto:

Cidadãs e cidadãos não precisam aceitar esta nova proposta. Há alternativas que não impactam tanto políticas públicas tão sensíveis e, principalmente, menos prejudiciais à população mais pobre. Além disso, uma proposta de transformação tão radical do nosso contrato social deveria passar por um teste democrático mais severo do que sugere sua apresentação por um representante do Poder Executivo que não ganhou o direito de apresentá-la por meio de deliberações democráticas majoritárias. Como Monica de Bolle afirmou recentemente em um texto pertinente, urge discutir a PEC “abertamente com toda a sociedade de forma clara, não apenas com os homens do Congresso Nacional” (e do Executivo).

É absurdo acelerar a votação desta PEC no Senado Federal quando a própria constitucionalidade da iniciativa legislativa é colocada em questão. Há estudo técnico da própria Consultoria Legislativa do Senado afirmando que a PEC é inconstitucional.

Quem ganha com uma votação acelerada, confusa e sem a devida compreensão popular?

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