Resetar a Internet: um movimento global pela privacidade

Faz um ano que Edward Snowden denunciou a ascensão de um "Estado industrial de vigilância", caracterizado pela massiva coleta de dados pela National Security Agency (NSA) e outras agências de inteligência ao redor do mundo. Como alertou Glenn Greenwald, um advogado de direito constitucional que abandonou a carreira jurídica para se tornar um dos principais jornalistas do mundo, "o governo dos EUA - em segredo completo - está construindo um aparato de espionagem direcionado não somente a seus cidadãos, mas a todos os cidadãos do mundo" (cf. 'Snowden, Greenwald e Miranda: vigilância e intimidação'). O que era apenas uma "hipótese orwelliana" confirmou-se em 2013.

O Brasil foi um dos países em que as revelações de Snowden mais tiveram repercussão. Em geral, podemos considerar três fatores que contribuíram para esse cenário. Primeiro, devemos lembrar que Glenn Greenwald mora no Rio de Janeiro e tem colaborado com o jornal O Globo. Segundo, que Greenwald produziu inúmeras matérias que mostraram que Dilma Rousseff e lideranças de empresas públicas brasileiras estão sendo monitorados pela NSA. Terceiro, que Rousseff aproveitou esse delicado momento para redefinir sua imagem de liderança perante a comunidade internacional, em colaboração com o Ministério de Relações Exteriores, e apresentar diversas críticas -- inclusive nos fóruns oficiais da Organização das Nações Unidas -- à ofensa aos direitos humanos cometida sistematicamente, e secretamente, pelos EUA.

Dessa conjuntura, temos a inusitada participação ativa da Rede Globo e do programa Fantástico nos debates públicos sobre o significado das denúncias de Edward Snowden no Brasil. É preciso reconhecer que, no jornalismo brasileiro, Sônia Bridi aproximou-se de Greenwald e produziu reportagens e entrevistas incríveis, como a exibida na última segunda-feira (02/06) na Globo News, que teve forte repercussão internacional.



Nesse cenário, é comum o sentimento de impotência e descrença na mobilização. "Estamos todos sendo vigiados. Não há nada que possamos fazer", dizem os descrentes. Tal postura, entretanto, é ignorante e conformista. Ela desconhece as ferramentas disponíveis para proteção da privacidade e a capacidade de mobilização de diferentes grupos, em diferentes partes do mundo, para mudar a forma como a Internet funciona.

O que fazer? A proposta do Reset the Net
O dia 05 de junho de 2014 foi escolhido como o momento inicial de uma estratégia global contra a vigilância em massa. Essa é a data da campanha Reset the Net, que tem como mote uma mobilização política pelas tecnologias: "não peça por privacidade, pegue-a de volta".


O Reset the Net parte de um diagnóstico (um problema), uma solução e um plano. O problema é a vigilância em massa a partir de "falhas" dos sistemas de comunicação, que não são seguros o suficiente (The NSA is exploiting weak links in Internet security to spy on the entire world, twisting the Internet we love into something it was never meant to be: a panopticon). A solução é o aumento da segurança no uso da internet (We can't stop targeted attacks, but we *can* stop mass surveillance, by building proven security into the everyday Internet). O plano consiste na mobilização em massa para que todos tenham acesso a ferramentas e tecnologias que protejam a privacidade (Get hundreds of sites & apps to add proven security).



A Disconnect, uma das principais plataformas de tecnologias de proteção da privacidade, listou vários produtos que podem ser utilizados pelos usuários. Dentre eles, estão:

  • Dashlane, que protege os dados localmente e de forma segura, impedindo que dados sensíveis sejam transmitidos para websites; e
  • DuckDuckGo, mecanismo de busca que enfatiza a proteção da privacidade e evita resultados personalizados (como o Google).
A Reset the Net também apoia a utilização de aplicativos para garantir a privacidade nos celulares. A campanha incentiva o uso do ChatSecure, TextSecure e do RedPhone -- os três aplicáveis para o sistema Android.

Além dos mecanismos para celular, a mobilização do dia 05/06 defende o uso de programas seguros de código aberto para chat, como o Pigdin (veja sobre aqui). Dentro do próprio Pigdin, há um plugin para garantir conversas privadas (off-the-record messaging). Basta um pouco de paciência e conhecimentos básicos de configuração de softwares para utilizar o programa e o plugin (veja como aqui).

Garantia de direitos pela tecnologia
O movimento Reset the Net é um retrato fiel dos conflitos e impasse de nosso tempo. Diante da "militarização da internet", como denunciou Jacob Appelbaum, e da inexistência de uma arquitetura jurídica global capaz de garantir o "direito fundamental à privacidade", ativistas e militantes estão recorrendo à técnica e à tecnologia para garantir a privacidade e o sigilo dos dados.

O próprio mote do movimento Reset the Net -- don't ask for privacy, take it back! -- revela essa tensão entre estratégias overground (regulação e direito) e estratégias underground (programação e criptografia). Estou convencido, desde a apresentação no debate A Nova Guerra Fria no Social Media Week em São Paulo, que os cyber-ativistas apostam nas estratégias underground, factível a partir da ação individual (programe sua própria máquina, crie seus próprios códigos para proteção da privacidade, compartilhe), diante da dificuldade de construção de um modelo global de proteção dos direitos fundamentais -- um ideal quase que kantiano. Há uma descrença no direito que precisa ser revertida, se ainda acreditamos na liberdade e na ideia de rule of law.

Talvez o momento seja de uma longa transição. A resistência pela tecnologia durará até que esforços coletivos sejam suficientes para criar standards e normas jurídicas globais e um staff responsável pela aplicável dessas normas de forma transparente e justificada. Esse cenário, entretanto, está apenas imaginação de teóricos. Até lá, é melhor nos protegermos.

Um comentário:

  1. Atualização #1: Faltou comentar da iniciativa "Tem Boi na Linha" no Brasil, que tem por objetivo ensinar técnicas de proteção de privacidade para movimentos sociais.

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