A semana da internet no Brasil: NETmundial e Lei 12.965/2014


A quarta semana de abril de 2014 poderá ser lembrada como a semana da internet no Brasil.


Após cinco anos de discussões acadêmicas e técnicas, consultas públicas, participação popular e um tortuoso processo legislativo (cf. os "cinco atos" do Marco Civil, criados por Anna Carolina Papp e Tatiana Mello Dias), a República conta agora com uma lei que "estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para uso da internet no Brasil". A liberdade de expressão, a neutralidade de rede e a privacidade tornaram-se pilares normativos do uso e regulação da internet no país.

O segundo motivo foi a realização do evento diplomático "NETmundial" em São Paulo, que reuniu representantes de 80 países e diferentes setores (governos, empresas, comunidade técnica, academia e sociedade civil) para os princípios da governança da internet e a mudança gradual para um modelo menos centrado nos Estados Unidos da América e mais aberto à participação de diferentes "grupos interessados" (multistakeholder governance).

O evento, formalmente chamado de Global Multistakeholder Meeting on the Future of Internet Governance, deu grande destaque ao Brasil no cenário global "pós-Snowden" (cf. reportagens da Euronews e Russia Today). Estrategicamente, o Partido dos Trabalhadores conseguiu articular a aprovação do Marco Civil da Internet na abertura do NETmundial (um ato extremamente simbólico, capaz de gerar capital político). O grande trunfo de Dilma Rousseff foi ter utilizado o discurso universalizante dos direitos humanos para defender a liberdade de expressão, a liberdade de associação e a privacidade no mundo on-line

Apesar das polêmicas envolvendo a neutralidade de rede -- uma assunto cada vez mais polêmico, considerando a sinalização da Federal Communications Commission (FCC) em permitir a criação de "fast lanes" entre produtoras de conteúdo e proprietários de redes --, a declaração oficial do encontro (NETmundial Multistakeholder Statement) avançou no sentido de confrontar as estratégias de vigilância dos EUA e "defender" o direito à privacidade em escala global ("not being subject to arbitraty or unlawful surveillance, collection, treatment and use of personal data").

Marco Civil da Internet aprovado. E agora?
A aprovação do MCI foi muito comemorada na noite de terça-feira. Na Arena NETmundial, evento organizado pela Secretaria-Geral da Presidência da República em parceria com a Prefeitura do Município de São Paulo e o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), a celebração ocorreu durante uma discussão entre membros do governo (José Eduardo Cardozo - Ministro da Justiça), academia (Ronaldo Lemos - UERJ e ITS) e sociedade civil (Bea Tibiriçá - Coletivo Digital). 

Entretanto, após a euforia da aprovação -- registrada na foto acima --, surgiram debates importantes. Uma vez garantida a neutralidade de rede, quais serão os limites da regulamentação por decreto do art. 9º? Quais podem ser os "serviços de emergência"? Em caso de discriminação do tráfego, como deve ocorrer a informação "de modo transparente, claro e suficientemente descritivo"?

Art. 9o O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.
§ 1o A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de: I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e II - priorização de serviços de emergência.
§ 2o Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1o, o responsável mencionado no caput deve: I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil; II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia; III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.
§ 3o Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo.
Os debates não se encerram com a promulgação do Marco Civil. Até a entrada em vigor da legislação, ainda há pontos polêmicos sobre a neutralidade de rede e a guarda de registros.

Os debates regulatórios sobre neutralidade de rede
O pesquisador Pedro Ramos (NDIS/USP), em uma iniciativa louvável inspirada pelo professor Tim Wu, criou uma página chamada neutralidade de rede, na qual explica o significado deste termo, quem ganha e quem perde com a regra de neutralidade na Lei 12.965/2014, e quais os desafios regulatórios para o Brasil.

Vários desafios surgem para os legisladores e, também, para os pesquisadores da área. Entre eles, podemos citar: (i) a definição do conceito de discriminação; (ii) a definição do conceito de serviços de emergência; (iii) as regras para estabelecimento de planos subsidizados (sponsored plans) no mercado mobile, bem como a legalidade de projetos como o da Banda Larga 0800; (iv) as regras para estabelecimento de Content Delivery Networks; (v) os requisitos para bloqueio de portas por provedores de acesso e empresas de backbones; (vi) a priorização de tráfego em momentos de congestão, bem como quais as escolhas dos usuários em relação a esse tema; (vii) o uso de filtros de spam na camada lógica da rede (spam filtering on network level); (viii) as regras para execução de acordos de interconexão (peering agreements).

Sem dúvidas, a regulamentação do governo -- em parceria com o CGI e a Anatel -- incitará uma agenda de pesquisas sobre neutralidade de rede muito mais profunda, bem como mais técnica.

Guarda de logs: Surveillance state à brasileira?
Outro ponto polêmico da Lei 12.965/2014 foi o artigo 15, relacionado à "guarda de registros de acesso a aplicações de Internet na provisão de aplicações". Tal artigo -- amplamente criticado por grupos como OurNetMundial, Partido Pirata e coletivos como Intervozes -- permite que empresas guardem dados de aplicação dos usuários por seis meses para fins investigativos.

Para muitos críticos e ativistas, o artigo 15 é completamente contra a privacidade e liberdade dos usuários. Na opinião de Felipe Cabral (Actantes), isso "significa que todo serviço de hospedagem de sites, de modo prévio e sem necessidade de informar ao usuários, terá obrigatoriamente de guardar informações de acesso de usuários em um banco de dados próprio que poderá ser solicitado a qualquer momento por um órgão jurídico brasileiro". Em uma crítica inspirada no sociólogo Sérgio Amadeu e em Michel Foucault, Cabral aponta que tal artigo aumenta o instrumental da sociedade de controle e permite que o sistema jurídico tenha mais poder sobre a vida dos cidadãos:

Neste caso são os “serviços de segurança” que aparelham o Estado os beneficiários diretos, e por consequência, o próprio Estado no exercício do poder de controle e coerção que se fortalecem. Para o professor Sérgio Amadeu, “a guarda de logs resulta principalmente no controle biopolítico dos cidadãos”, evocando assim numa análise foucaultiana o caráter perverso que uma simples condição como essa pode gerar no tecido social. O sistema jurídico passa a ter mais poder e controle sobre a vida dos cidadãos, numa intencionalidade clara de vigilância para punição, gerando um novo paradigma de administração da vida com enlaces sobre a dimensão digital, que até então não estava regulamentada. Se por um lado o argumento da “insegurança” diz falsamente que contraventores estão na internet cometendo crimes e que guardas logs “protege” a sociedade contra estas ações, por outro, fica evidente que no mundo analógico estes fatos acontecem sem a internet e ninguém, numa democracia, monitora a vida dos cidadão dessa forma. 

Um olhar para o futuro: uma agenda de cidadania e pesquisa
Inúmeros debates ocorrerão nos próximos meses, dada a possibilidade de regulamentação de vários aspectos da Lei 12.965/2014. Como atesta a reportagem da Agência Brasil, há diversas organizações interessadas em aprofundar a discussão sobre como os logs serão guardados e quais serão seus fins. A regulamentação do governo nos próximos 60 dias deve ser acompanhada de perto por todos aqueles interessados no futuro do uso democrático da internet no Brasil.

Apesar da complexidade do tema, a tarefa principal da sociedade civil é acompanhar de perto essa nova fase de produção normativa -- potencialmente menos aberta à participação e controle social, e mais suscetível a lobbys e interesses de grupos organizados -- e exigir transparência e justificação para as decisões de guarda de dados.

A regulamentação e implementação do Marco Civil da Internet é uma agenda de cidadania e de copesquisa (pesquisa coletiva). Juristas, sociólogos, cientistas políticos, economistas e ativistas devem mapear, com cuidado, as finalidades da regulação sobre neutralidade de rede e guarda de dados. São muitos os interesses em jogo e, como dizem os estadunidenses, the devil is in the details.

Além disso, é preciso estudar com seriedade a proteção da liberdade de expressão para o cidadão -- em especial, os blogueiros que produzem críticas autônomas -- e o modo como os juízes limitam o direito à crítica com base no "direito à honra" daquele supostamente ofendido. Como afirmou Rousseff, "o marco civil agora aprovado, garante que não há a possibilidade de censura de conteúdo de nenhuma forma. E muito menos no caso de páginas na internet que protestam contra a corrupção".

É preciso mais atenção para os efeitos do Marco Civil da Internet. A "semana da internet" foi somente o pontapé normativo e político para algo maior, com muitos desdobramentos futuros que afetarão nossas vidas.

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