Ativismo de espírito: de Hermano Vianna a Constantin Noica


Hermano Vianna é um antropólogo de cabeça aberta. Acompanho constantemente seu blog e, quando paro por alguns minutos na frente da televisão, o vejo no programa Navegador (exibido na Globo News e disponível on-line). Apesar de ser uma pessoa ativa no circuito cultural há muitos anos, as aparições físicas de Vianna são recentes. Antes do Navegador, ele agia por trás das câmeras, através de colunas em jornais e roteiros para a televisão.

Vianna é um desses sujeitos inquietos, que estão sempre questionando suas próprias opiniões e crenças. É também um observador, que estrutura suas falas e análises em fatos ou acontecimentos pouco notados. Sergio Cabral, no prefácio do livro O Mistério do Samba (1995), afirmou: "Hermano não é (nem de longe) desses intelectuais que criam teorias e saem procurando fatos para justificar as suas teorias". O elogio é sincero. Vianna é um pesquisador cultural com rigor metodológico, treinado nos estudos de antropologia do Rio de Janeiro. A diferença é que sua escrita é leve e rápida, pouco presa aos padrões da linguagem acadêmica.

Hoje, após visitar mais uma vez o blog minimalista de Hermano, deparei-me com um texto intitulado Constantin Noica, republicado de sua coluna no Globo. Inicialmente fiquei intrigado pelo título (que diabos de nome é esse? aliás, seria um nome?). De cara, tive a atenção presa por uma discussão sobre a confusão que se faz entre "esquerda" e "direita" nos dias atuais.

Esquerda? Direita? É cada vez mais difícil estabelecer fronteiras entre os dois lados do espectro político. Recentemente, a direita passou a copiar (a esquerda venceu?) as mesmas estratégias de marketing que antes embalavam preferencialmente opiniões de esquerda. Conservadores se vendem como transgressores, rebeldes, gente que pensa nadar contra a maré dominante. Isso combina com a pobreza do debate ideológico atual, onde oponentes se contentam com “paródia da política sectária, com todo mundo reduzindo os argumentos dos outros a caricaturas ridículas para declará-los não apenas errôneos, mas também ‘do Mal’ e perigosos” (citação de David Graeber). Tento me manter distante do bate-boca histérico e inútil. Mas ao mesmo tempo procuro novos critérios para saber quem é quem, no meio dessa confusão toda. Agrada-me especialmente esta declaração de Dimitry Vilensky, do coletivo russo “Chto delat?”: “é importante enfatizar que a pergunta ‘que fazer?’ está claramente identificada com a esquerda. Significa que admitimos que esta ou aquela situação histórica deve ser mudada, mas antes de agir fazemos perguntas e desenvolvemos um campo para a prática intelectual. A política de direita por outro lado normalmente começa com a pergunta ‘quem é o culpado?’.” Ao lado desta dicotomia culpa/ação, que envolve desejos de manutenção/mudança, vejo também cada vez mais sentido em separar o mundo em dois campos: o primeiro se contenta com a indignação (julgando que apenas o mostrar-se indignado é suficiente para apaziguar consciência culpada), o segundo – mais difícil e sem efeitos imediatos de animação das massas – se organiza em torno da busca constante pela invenção (Michel Serres afirma categoricamente: “O único ato intelectual autêntico, é a invenção”).

Após a introdução -- que tenta atribuir outro significado à esquerda: o da reflexão (que fazer?) e desenvolvimento de um campo para a prática intelectual que antecede a ação --, Vianna muda repentinamente o texto. Ele passa a narrar como descobriu um livro pouco conhecido de um autor romeno, Constantin Noica (1909-1987), e de que modo as ideias desse filósofo confundiram sua mente:

Outro dia, sem nenhum aviso, vasculhando estante de livraria, encontrei livrinho, intitulado “Diário filosófico”, que veio dificultar ainda mais essa minha caçada por certezas políticas perdidas. Fiquei louco por seu autor, Constantin Noica, de quem nunca ouvira falar antes. Esquerda? Direita? Difícil encontrar resposta. Poucos de seus livros foram publicados fora da Romênia (nesse sentido o Brasil é privilegiado). As escassas informações biográficas aumentam o mistério. Noica fez parte daquela turma romena da pesada, detonadora de ambiguidades/absurdos, que incluía Eliade ou Ionesco. Os comunistas o prenderam aparentemente por ter lançado livro de Cioran. Sua primeira tradução brasileira teve introdução de Olavo de Carvalho. Cada uma dessas pistas é apenas uma quebrada em grande labirinto. Poucas vezes me deparei com pensamento tão complexo. Os exemplos de “Diário filosófico” fundem qualquer cuca quadradinha. Há a defesa de uma escola onde “não se lenciona nada.” Os jovens “vão até lá para se libertarem da tirania do professorado.” Outra visão maravilhosa, bem “meme”: a língua como “hoste”, que “quer persistir”, como “tudo que existe”, na defesa e no ataque. O francês criou Joana D’Arc (que não fala latim com seus anjos), Racine ou a diplomacia, para “conquistar”. Serres reaparece por aqui: “E quanto resiste uma língua? Quanto pode inventar.”. Isso é só aperitivo. Noica deve ser lembrado neste meu texto como reinventor de outro dualismo, colocando em luta dois modos de militância: de um lado, Abel, o filho pródigo; do outro, Caim, o irmão do filho pródigo. As diferenças se multiplicam, ao infinito. O filho pródigo se perde e se arrepende. Seu irmão se conserva e petrifica o coração. Respectivamente: um segue a ética do devir, a possibilidade de optar (liberdade), desencadeando conflitos, aprendendo com inimigos (eis aí o “substrato epistemológico” do “amai os vossos inimigos” cristão), vivendo com fome; o outro defende a ética do reconhecimento (“manter o mundo no lugar”), das escolhas já feitas (congelamento), lê Cícero e seu elogio da amizade, vive com medo. Noica prefere o filho pródigo? Não devemos chegar a conclusões apressadas. Noica ama Ésquilo, sobretudo a Oréstia. “Um artista começa de repente do momento em que sabe dar razão a todos.” Egisto, Clitemnestra, Orestes, Apolo, Minerva: todo mundo tem razão. Até as Fúrias declaram: “Agrada-nos ter razão.” Ter razão não é ser dono da verdade. “Dogmáticos têm verdades mais que filósofos, mas não têm filosofia, porque não têm vida.”
O aperitivo de Vianna despertou minha curiosidade sobre o filósofo romeno. Procurei referências na internet e pouco encontrei em língua inglesa. Acessei  o Google Scholar e topei com diversos ensaios filosóficos. O problema é que os ensaios estão em romeno, uma língua ininteligível para um brasileiro. Em inglês, há um livro publicado em 2009 intitulado Becoming within Being. Acessei o livro, mas me deparei com um ensaio extremamente complexo de filosofia ontológica. Leitura impossível para o não versado em filosofia.

Mudei a estratégia para o underground, em busca de textos de Constantin Noica. Acessei o Bookza -- famigerado website russo de compartilhamento de livros -- e digitei seu nome no campo de busca. Para minha surpresa, um livro seu surgiu em português: As Seis Doenças do Espírito Contemporâneo, traduzido do romeno por Fernando Klabin e Elena Sburlea e publicado pela editora Record em 1999. Que eu saiba, esse livro e Diários Filosóficos são as únicas obras editadas no Brasil de Constantin Noica.

Após o baixar o arquivo digitalizado de algum servidor do leste europeu, iniciei a leitura de As Seis Doenças com alguma suspeita. A versão brasileira inicia-se com uma introdução de dez páginas de Olavo de Carvalho (seria esse um pensador da direita?). De forma objetiva, Carvalho sintetiza a proposta de Noica nesse ensaio heterodoxo de filosofia, que usa a linguagem das patologias para explicar as "doenças do ser".

Na vasta obra publicada de Constantin Noica, que começa com a sua tese de doutoramento sobre Kant (1931), este As Seis Doenças do Espírito Contemporâneo (1978) avulta como obra de maturidade, onde uma filosofia longamente meditada alcança enfim aquela expressão simples e nítida que é a marca do gênio filosófico aliado a um talento literário incomum. As seis doenças são nada mais, nada menos que as diferentes relações que têm entre si os traços definidores de todo ser, de toda realidade existente: a individualidade, a generalidade, as determinações que situam a individualidade na generalidade. Trata-se, pois, de um tratado de ontologia. Mas, em vez de apresentá-lo à maneira carregada e cinzenta de uma tese acadêmica, Noica preferiu fazê-lo sob a alegoria de um manual de patologia médica, onde, dos padecimentos do espírito humano, a descrição sobe até a análise das limitações e deficiências do ser em geral. E como para chegar a seus diagnósticos ele toma por material de exame as obras maiores de literatura e da filosofia ocidentais, este livro se torna também, de quebra, um ensaio de filosofia da história e da cultura.

A introdução dá extrema importância ao fato do autor ser um pensador romeno. Os romenos, ao longo de sua história recente, foram invadidos por diversos povos e dominados por fatores bélicos e econômicos. Possuem uma "memória terrível" e "conversam uma recordação deprimentemente exata de cada uma das vergonhas, de cada uma das farsas cruéis que os obrigaram a encenar". Entretanto, tornaram-se mestres na linguagem e no uso das palavras. Tornaram-se sinceros consigo próprios e denunciaram os absurdos da realidade. Para Carvalho, "não há um povo talvez no universo que tenha mais que ele o senso da incongruência entre o exterior e o interior do homem, da impossibilidade de expressar a realidade nua e crua sem que ela acabe perdendo uma fantasia alucinada". 

O dadaísmo e o teatro do absurdo são invenções romenas. Alguns de seus intelectuais captaram a incongruência entre o exterior e o interior e notaram a "impossibilidade de expressar a realidade nua e crua sem que ela acabe parecendo uma fantasia alucinada". Para Carvalho, "não há coisa que um romeno considere mais divertida do que não ser compreendido quando está dizendo uma coisa perfeitamente óbvia e verdadeira". Eis o espanto de Vianna diante da tese de Noica: precisamos de uma escola onde nada se leciona, uma escola livre. Noica tinha uma visão para a Romenia ("Eu gostaria que duas grandes coisas fossem ensinadas em uma escola romena: um modo livre de pensar e uma mentalidade particular"). É esse tipo de "ativismo do espírito" -- conforme expressão de Mircea Vulcănescu (1904-1953) -- que tem encantado seus leitores, especialmente em seu país de origem (cf. 'Constantin Noica or about a possible paideutic model in the Romanian culture', de Gabriela Pohoata).

O "ativismo do espírito" de Noica dá sinais de luz para o impasse sobre o que é a esquerda hoje (seria a mesma esquerda do século XX?). Hermano Vianna encerra seu texto com uma pergunta (ou a confissão de uma obsessão): "Estou biruta em farejar nessas palavras o programa para uma esquerda refundada, fazedora/inventora, não reclamona?".

Acho que não. E é curioso notar que mesmo em Olavo de Carvalho -- um polêmico pensador de matriz conservadora, que tem atacado tanto a esquerda governista quanto a "nova direita" --, esse exercício também é feito. Propõe que o pensador romeno ajude substancialmente na retomada do debate sobre a "civilização brasileira", o que inclui discutir nossa cultura e nossa política.

Não se trata portanto apenas de interpretar o pensamento de Noica, mas também de sugerir o quanto seria interessante nos interpretarmos a nós mesmos à luz desse pensamento. Que um autor romeno já falecido possa ter  tanto a dizer ao Brasil de hoje não é, aliás, nada de estranho, quando nos lembramos das afinidades sutis e misterioras que ligam esses dois países tão distantes geograficamente. A voz dos sábios romenos já nos socorreu em muitas ocasiões, quando necessitávamos de uma ideia, de uma sugestão, de uma solução. Tristan Tzara inspirou  o nosso modernismo; as teorias de Manoilescu inspiraram o nacionalismo econômico da Era Vargas; Gheorghiu abalou nossa imagem rósea do comunismo, antes da quera do Muro de Berlim; Eliade nos ajudou a orientar-nos na barafunda de nosso sincretismo religioso; e O Rinoceronte de Ionesco se tornou involuntariamente um emblema do protesto estudantil durante o regime militar. Os romenos vivem nos ajudando a falar - e a libertar-nos, por meio da linguagem, dos fantasmas mudos que nos assombram. Faço votos de que Noica dê um impulso substancial a uma retomada do nosso autêntico debate cultural, hoje preso às miudezas da política imediata e acometido - nos termos da medicina do espírito - de temível acatolia: a perda do sentido universal da existência brasileira.

Noica não escreve sobre política, mas sim sobre a importância da cultura para o homem e sobre a essência do ser. Ao vestir o chapéu de um "médico do espírito", identifica que sempre há uma relação conflituosa entre o individual, o geral e as determinações. Sua brincadeira filosófica consiste em identificar duas causas imediatas para as doenças do espírito -- a recusa e a carência --, que se manifestam diante de necessidades não atendidas (generalidade, individualidade e determinações). Através de um delicioso repertório de criações culturais literárias -- "literatura é a vida", para Noica --, ele identifica tipos específicos de doenças da alma. A recusa da generalidade (acatolia) está presente em Don Juan, narrado por Moliére. A recusa da individualidade (atodecia) está em Guerra e Paz de Leon Tolstoi. A recusa das determinações (ahorecia) está em Esperando Godot, de Samuel Becket. Por outro lado, a carência da generalidade  (catolite) está Birotteau de Balzac. A carência da individualidade (todetite) é notável em Os Demônios de Dostoiévski. A carência de determinações (horetite) está em Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.

A brincadeira de Constantin Noica consiste em falar de nós mesmos. Para ele, as doenças do espírito possuem um caráter constitutivo. Noica não propõe um remédio ou uma solução para cada uma delas. Ele quer apenas explicar características do ser, pois acredita que, através do autoconhecimento (nossa existência humana, nossas maneiras de raciocinar e de nossos pensamentos) que surgem tramas que orientam as ações. É preciso conhecer as doenças e "aprender a  nelas reconhecer-se e ler seu destino".

Nenhuma neurose poderia explicar o sentimento de desespero de Eclesiaste, o sentimento de nosso exílio na terra ou de nossa alienação, o tédio metafísico, a consciência do vazio e do absurdo, a hipertrofia do eu ou a revolta sem objetivo; nenhuma psicose poderia explicar o "furor" econômico ou político; a arte abstrata; o "demonismo" técnico, nem talvez aquele formalismo extremo que hoje em  dia, em todos os domínios da cultura, consagra o primado da exatidão sobre a verdade. Incontestavelmente, de algumas dessas tendências, se não de todas, nasceram e continuam a nascer grandes obras: nem por isso elas deixam de ser grandes desregramentos do espírito. No entanto, diversamente das doenças somáticas, que são acidentais (a morte mesma, dizem, é um acidente na ordem dos seres vivos), e das doenças psíquicas, que de certo modo são contingentes e necessárias ao mesmo tempo, as doenças do espírito parecem adquirir um caráter constitucional. (...) As doenças do  ser, isto é, as doenças de seu ser espiritual, conservam ou, ao menos, podem conservar, em sua desordem mesma, o positivo humano. A desordem do homem é sua inesgotável fonte de criação.

Em tempos de confusão e desordem -- como parece ser o tempo atual no Brasil e no mundo -- o apelo de Noica parece ser esse: filosofia como modo de vida (ativismo de espírito) que leva à criação. Será esse o significado de uma nova esquerda?

2 comentários:

  1. [A Pedagogia de Constantin Noica]

    Em que consistia a pedagogia de Noica? Em primeiro lugar, ela exigia certa proficiência técnica. Ele oferecia a qualquer jovem que declarasse amar a filosofia 10 lições introdutórias de grego antigo e os instava a aprender alemão e ler “cem importantes interpretações”. Participei, por exemplo, de seminários sobre Platão (com ênfase especial nos diálogos aporéticos da primeira fase), sobre Hegel e de algumas discussões sobre Plotino e Descartes. Daí seguiu-se uma vívida troca de ideias sobre nossos próprios projetos de pesquisa e sobre alguns dos projetos do professor. Mas, para além de todos os exercícios técnicos (cuja importância é difícil de ser apreendida por quem não tenha uma noção exata da pobreza do contexto), a pedagogia de Noica era uma forma de treinar o espírito para a atividade cultural, desencorajada pela pobreza das condições de vida e de trabalho oferecidas pela sociedade comunista. “Descobrireis que os limites interiores são mais difíceis de transpor do que os exteriores” – era uma de suas fórmulas favoritas. Ou “Não presteis atenção às circunstâncias imediatas. Considerai a história pura meteorologia: não mudeis vosso destino e vossas ideias dependendo do clima. A história precisa de cavalos. Peço-vos que sejais cavalos de corrida”. Quando indagado por que nunca pensou em emigrar, ele elaborava um longo discurso sobre o júbilo do limite assumido, sobre a insuficiência enriquecedora em oposição à plenitude empobrecedora.

    Prefiro viver num país onde tudo ainda está por fazer a viver num país em que as grandes aventuras do espírito já foram realizadas. O que eu faria se fosse para a Europa Ocidental? Não encontraria nenhum espaço a menos que dirigisse minha atenção a algum obscuro comentador de Aristóteles, a algum texto apócrifo, a algum fragmento incerto. Aqui posso tranquilamente ocupar-me com o próprio Aristóteles. O tempo do “alexandrinismo” ainda está distante. Regozijemo-nos no frescor do “arcaico” e não esqueçamos – sob a influência de uma deficiência real – a experiência privilegiada do possível.
    http://esbocoserascunhos.blogspot.com.br/2013/12/vida-intelectual-sob-ditadura_18.html

    ResponderExcluir
  2. Ao terminar de lê-lo tive vontade de sair correndo para livraria e conseguir o livro do Noica. A literatura alimenta os que anseiam, a ação nutre a alma. Sem ação a alma adoece....Para mim, só existe esquerda porque existe ativismo de espirito.

    ResponderExcluir

Mais lidos no mês