Crise e renovação na democracia brasileira: as incertezas de uma nova política


Os últimos dias têm sido tão intensos e confusos, que é difícil conseguir tempo para refletir sobre o significado dos acontecimentos. Desde o anúncio da redução das tarifas dos transportes públicos - a primeira vitória das multidões que tomaram as ruas de grandes cidades como São Paulo, a partir da pauta construída pelos jovens militantes de grupos como o Movimento Passe Livre -, o cenário mudou drasticamente. Há algo novo acontecendo. É preciso um esforço para tentar compreender - sem rir, nem chorar - o impacto do gritos das ruas na democracia brasileira, bem como os potenciais perigos deste fenômeno.

A tarifa baixou. E agora?
O primeiro elemento que chama atenção é a penetração da ideia de "ocupar as ruas" em novas camadas, sob outras justificativas e motivações.  Na quinta-feira, dia 20 de junho, isso ficou bem claro em São Paulo. Se, na segunda-feira, as mais de cem mil pessoas que tomaram as vias públicas pediam (i) um transporte público de qualidade e (ii) o fim da violência policial, três dias depois, o que se via na Avenida Paulista era uma aglomeração de jovens de classe média com os rostos pintados (muitos enrolados em bandeiras do Brasil), pedindo (i) o fim da corrupção, (ii) a saída das lideranças do Partido dos Trabalhadores que hoje ocupam importantes cargos no Poder Executivo e (iii) uma democracia sem partidos (?). Tudo isso em um clima quase que carnavalizado - no mínimo, eufórico -, impulsionado pelas fortes luzes verde e amarela que saltavam do prédio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo.


Na quinta-feira, ao observar a paradoxal violência que alguns jovens demonstravam na Avenida Paulista com relação a militantes do PT, do PSOL e do PSTU, bem como a empolgação nacionalista que pairava no ar, escrevi (em uma rede social) algumas impressões impregnadas de preocupações: Clima muito, muito estranho em São Paulo. Jovens pintados com verde e amarelo, FIESP estampando a bandeira do Brasil, grupos expulsando partidos políticos, pessoas com bandeira "nem esquerda, nem direita, pra frente!", pessoas críticas com contas do Facebook deletadas. O ufanismo-fascista está ganhando força. O relato impressionista - alarmista, para muitos - serviu de alerta para transformações em andamento e a ascensão de um novo discurso.

Nesse momento, muita gente percebeu que havia uma pauta conservadora conquistando corações e mentes, mesmo que de forma implícita (quase como um gás). Apesar de ter sido um fenômeno predominantemente paulista, esse foi um grande despertar para muitos brasileiros. A noite de quinta - marcada pela ascensão dos nacionalistas em São Paulo, pela violência no Rio de Janeiro e pela ocupação e destruição de prédios governamentais em Brasília - foi importante para lançar uma questão fundamental: o quão perigoso é o momento em que nos encontramos?

Menos euforia e mais reflexão
Na sexta-feira surgiram várias análises que acalmaram os ânimos daqueles que começaram a pensar na hipótese de um golpe de Estado (cf. 'Não há ameaça de golpe', de Gilberto Maringoni). Diante da distorção das ocupações, o Movimento Passe Livre sugeriu um recuo e o fim das manifestações que não possuíam pautas concretas (cf. 'Movimento Passe Livre sai das ruas para não se confundir com extrema direita'). Surgiram então novas convocações, com pautas específicas.

Em São Paulo, movimentos sociais se articularam com o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e organizaram um protesto na Praça Roosevelt contra o projeto de lei "da cura gay", aprovado pela "Comissão de Direitos Humanos e Minorias" da Câmara dos Deputados. Em outras cidades, os debates giraram em torno da Proposta de Emenda Constitucional nº 37, que pretende modificar a Constituição para garantir poderes exclusivos de investigação criminal para a polícia, limitando a atuação do Ministério Público (cf. 'Ao menos dez capitais e outras 23 cidades têm protestos hoje; PEC 37 domina a pauta'; para entender a evolução institucional do MP, cf. 'Ministério Público à brasileira', do cientista político Rogério Arantes).

Essas mobilizações são importantes para estimular o pensamento crítico sobre temas específicos. O caso da PEC 37 é um exemplo disso. Pela primeira vez, milhares de brasileiros buscaram compreender o processo legislativo no país (o que é uma Proposta de Emenda Constitucional?), em seguida buscaram entender o que  a Constituição diz sobre poderes investigativos (o Ministério Público pode fazer o que faz?), por fim, tentaram entender as posições dos dois lados (é melhor poderes exclusivos de investigação para a polícia? Há limites para a atuação do Ministério Público?). Esse tipo de reflexão é fundamental para sairmos de um ponto raso de discussão. Manifestar-se contra a corrupção, por exemplo, não mostra maturidade política alguma. Todos são contra a corrupção (desvio de verbas públicas para benefícios próprios). O problema é engajar-se em questões específicas e dilemáticas, que exigem posicionamento e justificação racional.

O pronunciamento de Dilma Rousseff: qual a proposta do governo?
Sexta-feira também foi o dia da resposta oficial do governo federal sobre os protestos que dominaram o país. Em seu discurso, Dilma Rousseff ressaltou o Estado de Direito (rule of law), o governo por procedimentos legais e o primado da "lei e da ordem" - argumentos típicos de um governante que se vê potencialmente ameaçado pela desordem e pela potência das massas. Ao reconhecer o déficit democrático no Brasil, convocou as lideranças dos movimentos para atuarem junto ao governo na solução dos problemas. Dilma falou em uma "nova energia política" e na tentativa de aproveitar o despertar dos jovens para solucionar problemas que ainda encontram obstáculos políticos e econômicos. 



O aspecto mais significativo do discurso da Presidenta foi a sinalização - em tese - do aprofundamento da democracia, aproveitando o "vigor das manifestações". Ao articular saídas para o impasse político gerado pelos protestos, arriscou três saídas discutíveis: (i) a criação do Plano Nacional de Mobilidade Urbana; (ii) a destinação de 100% dos royalties do petróleo para a educação (velha proposta do governo federal, amplamente rejeitada pelos governos estaduais); e a (iii) utilização de milhares de médicos estrangeiros para melhoria dos serviços de saúde. Ainda, Dilma destacou a utilização dos instrumentos da Lei de Acesso à Informação, que empoderam o cidadão com informações sobre gastos públicos. Na ótica da Presidenta da República, a corrupção se combate com "transparência e rigor".

O discurso da Presidenta foi importante para transmitir a visão do governo federal sobre os fatos. Ao pedir calma e a definição de agendas, Dilma estimula duas ações sociais importantes neste momento crucial: (i) a reflexão sobre o sentido da "ocupação pela ocupação" (estamos nas ruas por quê?), e (ii) a construção de agendas políticas concretas. É certo que a definição de agendas concretas provocará a fragmentação e  a divisão das multidões. Mas o fortalecimento de uma política programática robusta (grupos com programas e propostas) é uma forma de minimizar o surgimento de lideranças carismáticas que utilizarão a demagogia para simplificar questões complexas e conquistar a submissão das massas. Uma população mais ciente da complexidade da formulação de políticas e consciente de objetivos factíveis é menos suscetível a manipulações que legitimam golpes autoritários. Nesse sentido, o discurso da Presidenta mostra uma preocupação com o regime democrático brasileiro, que merece ser constantemente renovado.

Caminhos possíveis: uma nova política
Apesar da confusão e das incertezas, o cenário atual traz algo de positivo. Ele lembra que um regime democrático precisa ser constantemente assegurado por todos nós. Ao mesmo tempo, seguindo a análise de Boaventura de Sousa Santos, os protestos mostram que somente vale a pena "pagar o preço do progresso" se houver aprofundamento da democracia, redistribuição da riqueza criada e "reconhecimento da diferença cultural e política daqueles para quem progresso sem dignidade é retrocesso". A ânsia desenvolvimentista - que inclui a atração de investimentos e eventos esportivos - revela também o distanciamento da população com os espaços deliberativos.

Com relação ao futuro dos protestos, agora é hora de discutirmos com muita seriedade as alternativas possíveis, fortalecendo a definição de agendas e programas. É hora do dissenso, não da opressão. É hora de respeitar as opções ideológicas e os partidos, sem cair na falácia de um país "sem partidos e sem corrupção". Não precisamos de um novo "Brasil: ame-o ou deixe-o". Precisamos de atenção e uma compreensão mínima de história do século XX.


A academia também tem que assumir seu papel. Universidades públicas, privadas, instituições de pesquisa: é hora de olhar para trás, tentar entender o que está acontecendo, e extrair alguma lição valiosa disso tudo. Sem elitismo intelectual, é hora de promover debates abertos e tentar, ao máximo, construir algum conhecimento sobre uma nova política e os rumos do país. Há muito o que fazer.

Um comentário:

  1. Claro que temos limitações políticas e econômicas... Achei muito engraçado como a sentença colocada por ela, e a explicação do porquê o Brasil não cresce melhor e mais rápido...

    Transparência??? não pesquisei a época do vídeo, mas https://www.facebook.com/photo.php?v=153509928145349 tá ai a 'fucking' transparência...

    E... continua... com muito ainda a fazer.

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