Nicolelis e a Brainet: computação orgânica e revolução comunicacional?

O nome do paulistano Miguel Nicolelis é muito conhecido entre os neurocientistas de todo o mundo. Líder do Nicolelis Laboratory no Departamento de Engenharia Biomédica da Duke University (EUA) e fundador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal, o cientista é responsável por estudos pioneiros em áreas pouco conhecidas pelos não-especialistas em neuro-engenharia, como neuronal population coding, Brain-Machine Interfaces (BMI) e neuroprosthetics. Semana passada, entretanto, o nome de Nicolelis voltou ao centro dos debates científicos e se tornou ainda mais conhecido em razão da publicação do estudo coletivo A Brain-to-Brain Interface for Real-Time Sharing of Sensorimotor Information, divulgado em 28 de fevereiro na revista Scientific Reports, periódico de acesso aberto do grupo Nature.

O experimento científico de Nicolelis, conduzido por uma equipe em Durham (EUA) e outra em Natal, demonstrou que um par de ratos pode cooperar através de uma interface cérebro-a-cérebro (brain-to-brain interface) para atingir um objetivo comportamental comum. A pesquisa tenta provar um novo tipo de comunicação cerebral para execução de tarefas, uma espécie de computação orgânica que Nicolelis chama de Brainet. A explicação completa do experimento, que envolve um rato encoder e outro decoder, está no artigo científico (leia aqui). Para traduzir a complexa linguagem científica da publicação, jornalistas comentaram os resultados da pesquisa de Nicolelis em textos bem provocantes (cf. a matéria do The Guardian 'Brain-to-Brain interface transmits information from one rat to another' e o texto do Outras Palavras 'O experimento revolucionário de Miguel Nicolelis').

A explicação dos resultados dessa pesquisa, enviada para a revista Scientific Reports no final de dezembro de 2012, é feita pelo próprio Miguel Nicolelis neste vídeo abaixo (em inglês).



Apesar de ser um experimento em ratos para execução de tarefas simples mediante recompensas, as conclusões preliminares fornecem uma espécie de proof of principle para novas pesquisas sobre a comunicação dos seres vivos através de um novo canal e a potencial coordenação de atividades cooperativas através de sinais cerebrais. Os resultados do artigo científico são extremamente instigantes (o grupo afirma: as far as we can tell, these findings demonstrate for the first time that a direct channel for behavioral information exchange can be established between two animal's brains without the use of the animal's regular forms of communication. Essentially, our results indicate that animal brain dyads or even brain networks could allow animal groups to synchronize their behaviors following neuronal-based cues). Ao que tudo indica, trata-se da potencial existência - ou demonstração de existência - de redes de cérebros, o que supera a lógica mecânica das redes de máquinas (computadores) e nos força a imaginar uma outra dimensão de conexões e possibilidades (cf., nesse aspecto, o inspirado texto 'A revolução nicoleliana').

As pesquisas de Nicolelis - geralmente realizadas por consórcios universitários sem fins lucrativos e divulgadas em periódicos livremente acessíveis (fato por si só notável, considerando que tais pesquisas poderiam estar sendo desenvolvidas secretamente por grupos militares) - são direcionadas à solução de graves problemas humanos, como limitações físicas oriundas de nascimento ou acidentes. Assim como outras pesquisas em andamento, tal como a da integração entre cérebro e máquina para questões motoras (ver vídeo abaixo), o grupo de Nicolelis defende que tais avanços tecnológicos devem beneficiar a cooperação e a redução de desigualdades.



É claro que avanços como a Brainet - algo incipiente que provavelmente se desenvolverá ao longo dos séculos - levantam graves questionamentos éticos e esboçam cenários distópicos de uma sociedade global marcada pelo controle proporcionado pela tecnologia (imagine um mundo com conexões entre cérebros e corpos integrados a máquinas?). É inegável que discussões sobre os limites e perigos desses avanços são importantes. É também óbvio pensar em uma cisão entre otimistas (ou utópicos) e pessimistas (distópicos) com relação ao tipo de sociedade que será construído com base nessas transformações tecnológicas e no desenvolvimento da engenharia-neural.

O mais importante, todavia, Nicolelis já está fazendo, ao publicizar suas descobertas graduais e compartilhar os resultados de suas pesquisas não somente com a comunidade científica, mas com todos os interessados em ciência. Um grande debate público depende do conhecimento dos sujeitos afetados sobre o tema a ser discutido e potencialmente regulado. Demagogias e simplificações são caminhos fáceis para confundir as massas. Por mais complexo que seja um descobrimento ou o teste de uma hipótese, é preciso divulgá-lo amplamente e permitir o exame público. Esse é o primeiro passo para tentar equilibrar democracia e revoluções científico-tecnológicas.

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