A questão palestina: resgatando o enfoque deleuziano


O filósofo da imanência e a questão palestina
Em 1978, durante a preparação da redação do livro Capitalism et schizophrénie tome 2: Mille Plateaux, o filósofo francês Gilles Deleuze fez sua primeira declaração pública sobre o conflito Israel-Palestina em um artigo publicado no jornal Le Monde. O interesse de Deleuze sobre o "povo sem terra" (os desterritorializados) e a causa palestina, como relata François Dosse, surgiu da participação de Félix Guattari - seu parceiro na filosofia - em encontros sobre a resistência do povo palestino na capital francesa. Guattari era próximo de Ilan Halévi, um escritor e militante judeu, residente em Paris, que era representante da Organização para a Libertação da Palestina (com a articulação acadêmica e editorial de Guattari e Deleuze, Halévi fundou em 1982 a Revue des Études Palestiniennes, ligada ao Institute for Palestine Studies). A partir das ligações de Guattari com Halévi, Deleuze aprofundou-se na questão palestina, manifestando sua opinião em um visionário e breve texto.

Deleuze escreveu seu artigo após mais um episódio de violência contra os palestinos no ano de 1978. Ele manifestou-se após uma vasta operação militar de Israel no sul do Líbano, na qual centenas de refugiados em campos palestinos e civis libaneses foram mortos. O texto - disponibilizado em português no blog do Rogelio Casado - inicia-se com duas perguntas críticas, ainda válidas após 34 anos: "Como os palestinos poderiam ser 'parceiros legítimos' em conversações de paz, se não têm país? Mas como teriam país, se seu país lhes foi roubado? Os palestinos jamais tiveram escolha, além da rendição incondicional. Só lhes ofereceram a morte".

Deleuze chama a atenção para a distinção entre a forma como são consideradas as ações dos israelenses ("retaliação legítima") e a dos palestinos ("crimes terroristas"), modalidade discursiva disseminada atualmente pelos veículos de comunicação: "No conflito Israel-Palestina, as ações dos israelenses são consideradas retaliação legítima (mesmo que seus ataques sejam desproporcionais); e as ações dos palestinos são, sem exceção, tratadas como crimes terroristas. Um palestino morto jamais interessa tanto, nem tem o mesmo impacto, que um israelense morto. (...) Um povo sem terra e sem Estado, como o palestino, é como uma espécie de leme, que dá a direção em que andará a paz de todos que se envolvam em suas questões. Se tivessem recebido auxílio econômico e militar, ainda assim teria sido em vão. Os palestinos sabem o que dizem, quando dizem que estão sós".

Deleuze estava certo, em 1978, de que o conflito Israel-Palestina era um modelo que determinaria como o ocidente enfrentaria os problemas do terrorismo, em especial na Europa. O tom profético serviu de alarme para a intensificação do discurso do terrorismo - discurso este que atingiu seu ápice após os atentados de 11 de setembro de 2001 - e a implementação de um experimento perverso, focado em um modelo de repressão: "A cooperação internacional entre vários Estados e a organização planetária dos procedimentos da polícia e dos bandidos necessariamente levará a um tipo de classificação que cada vez mais incluirá pessoas que serão consideradas 'terroristas'. Aconteceu já na Guerra Civil espanhola, quando a Espanha serviu como laboratório experimental para um futuro ainda mais terrível que o passado do qual nascera. Israel inteira está envolvida num experimento. Inventaram um modelo de repressão que, devidamente adaptado, será usado em vários países".

Um outro ponto atualíssimo do artigo de Deleuze é a não-coercitividade das resoluções da ONU e o desrespeito das ações bélicas de Israel com as decisões internacionais (algo escancarado com a invasão do Iraque pelos Estados Unidos): "Há marcada continuidade nas políticas de Israel. Israel crê que as resoluções da ONU, que condenam Israel verbalmente, são autorizações para invadir. Israel converteu a resolução que o mandava sair dos territórios ocupados em direito de construir colônias! Achou que seria excelente ideia manter uma força de paz no sul do Líbano… desde que essa força, em vez do exército israelense, transformasse a região em área militar, sob controle policial, um deserto em matéria de segurança". A questão palestina, aliás, coloca em cheque a credibilidade da organização. Entre 1947 e 1990, 690 resoluções da Assembleia Geral foram ignoradas (cf. 'Palestine & UN: History of a double standard').

O texto de Deleuze encerra com um chamado para que a causa palestina seja levada a sério: "Esse conflito é uma estranha espécie de chantagem, da qual o mundo jamais escapará, a menos que todos lutemos para que os palestinos sejam reconhecidos pelo que são: 'parceiros genuínos' para conversações de paz. De fato, estão em guerra. Numa guerra que não escolheram".

Gilles Deleuze - Le plus philosophe des philosophes, segundo as elogiosas palavras de Michel Foucault - suicidou-se em 4 de novembro de 1995, dezessete anos depois do primeiro texto-manifesto pela causa palestina. Do cenário descrito pelo filósofo em 1978, pouco de significante mudou nos dias atuais.


O bombardeio da Faixa de Gaza e o massacre palestino: o paradoxo do modelo civilizatório de Israel
O ataque de novembro de 2012 promovido por Israel na Faixa de Gaza ("Operação Pilar de Defesa") já registra o número de aproximadamente 100 palestinos mortos, quase todos civis. Para alguns analistas, o ataque está mais ligado a uma manobra eleitoral mal executada (cf 'Aposta arriscada dos israelenses pode ajudar salafistas'). Sendo ou não uma manobra eleitoral, o fato é que a escalada do conflito entre Hamas e Israel tornou-se tema central de discussão no cenário internacional (cf. 'Violência continua e cresce pressão internacional por trégua em Gaza'). A mídia, entretanto, se limita a reportar informações sobre bombardeios e mortes, sem aprofundar o debate sobre os motivos da violência (e o assassinato do líder do Hamas, Ahmed al-Jabari, em 14 de novembro), o contexto de massacre dos palestinos por Israel e a disparidade de tecnologia entre as armas utilizadas por Israel - financiadas amplamente pelos Estados Unidos, que injetam anualmente 3 bilhões de dólares por ano no país - e o grupo armado palestino.

O editorial do portal Electronic Intifada critica a forma como as versões e narrativas dos palestinos são ocultadas pela mídia britânica (British Broadcasting Company), ao passo que os oficiais do governo de Israel possuem livre trânsito para disseminação da "verdade dos fatos" (Since al-Jabari’s assassination on 14 November, the BBC has rolled out all the Israeli heavyweights across its programming: Ron Prosor, Israeli ambassador to the UN; Danny Ayalon, Israel’s deputy foreign minister; Mark Regev, an Israeli government spokesperson; and Daniel Taub, Israel’s ambassador to the UK. All have been allowed to disseminate, with virtually no interruption or correction, the propaganda line Israel is using for the duration of this assault on Gaza: that Israel withdrew its settlers in 2005 in order to allow Gaza to live in peace but Hamas insisted on a war which Israel has so far resisted, but is now being reluctantly drawn into in order to protect its citizens).

A estratégia de Israel de fabricação de consensos é minuciosamente pensada. Um estudo publicado da New Left Project revelou que após os bombardeios de Gaza de 14/11, a BBC exibiu quatro entrevistas, em diferentes programas, com Jonathan Sacerdoti, membro do "Institute for Middle Eastern Democracy". O estudo, todavia, revela que Sacerdoti era, há dois anos, Diretor de Relações Públicas da Federação Sionista, o maior grupo lobista pró-Israel do Reino Unido (cf. 'Who is Jonathan Sacerdoti, the BBC’s Go-To Man on Gaza?'). Em todas as suas intervenções ao vivo, Sacerdoti argumentou de forma "imparcial" - na posição "legítima" de membro de uma "ONG para a democracia" - que Isreal está protegendo seus cidadãos e que os ataques terroristas do Hamas devem ser sufocados (note o discurso do terrorista, tal como denunciado por Deleuze).

O que poucos percebem é que o conflito atual é parte de um longo processo de massacre do "não civilizado", executado há décadas por Israel. Hugo Albuquerque, blogueiro e colaborador do Outras Palavras, captou bem a essência do fenômeno, em um brilhante texto de inspiração deleuziana: "A forma como se estrutura a atual contenda entre israelenses e palestinos não é mesmo conflitual: agora, a exemplo da violência de três anos atrás, trata-se de um massacre. A Palestina não detém força aérea, marinha de guerra ou tropas regulares. Gaza é praticamente um gueto. Israel tem o que de mais moderno existe no mundo em termos bélicos. A proeminência do complexo bélico-industrial israelense é tamanha que consome os recursos do próprio país. O saldo de mortos palestinos é uma evidência clara: o bebê de onze meses morto recentemente em um ataque da força aérea de Israel a Gaza é prova cabal. Desta vez, outro item também não é diferente: a indiferença da cobertura midiática ocidental é proporcional a indiferença israelense pela vida dos palestinos. Mas a Palestina é resistência. Para além da catástrofe e do romantismo: se o 'índio' era, para muito além da Índia real, a definição genérica para "homem colonizável" dos europeus, 'palestino' é muito mais do que uma nacionalidade ou uma etnia, mas uma subjetividade decorrente da resistência à colonização incessante da máquina ocidental -- e sua fantástica desconsideração em relação ao outro. Não é que somos todos palestinos, mas devimos palestinos quando resistimos a esse processo de avanço incivilizado da civilização" (cf. 'Pela Palestina').

O ponto central da análise de Hugo Albuquerque é que o modelo civilizatório de Israel consiste em um paradoxo: "Justamente por ser tão civilizado é que Israel é ele mesmo inimigo da civilização, uma vez que sua estratégia sempre girou em torno da destruição das instituições alheias, financiamento de grupos religiosos para minar grupos árabes laicos (como no caso do Hamas, financiado para enfraquecer a laica Fatah) e pela destruição física da civilização ou bolsões civilizacionais dos seus adversários (como o caso do Líbano)".  O paradoxo de Israel é o paradoxo da civilização ele mesmo, de sua insustentável leveza que o faz tender contra si mesmo a se devorar, como diz poeticamente Hugo.

O objetivo de Israel, a julgar pela declaração do Ministro do Interior, é de mandar Gaza de volta à idade média (cf. 'Israel's medievalism'). Isso implica a continuação de lógica de aniquilação do "selvagem" pelo "civilizado", ou ao menos aniquilar o Hamas, grupo islamita responsável pela organização dos palestinos. A situação é especialmente delicada, pois o Hamas traz consigo o peso do Clash of Civilizations definido por Samuel Huntington: daquela cisão entre entre islâmicos e ocidentais, fomentadora de ignorância e violência. O ocidente não reconhece que o Hamas é, acima de tudo, um movimento social (cf. 'The Palestinian Hamas: vision, violence, and coexistence').

A única alternativa possível é aquela apontada por Gilles Deleuze - e também por  Uri Avnery, fundador do movimento Gush Shalom. Não existe futuro para Israel sem paz. E não existe paz sem o reconhecimento do Estado palestino com fronteiras definidas. O nosso papel é reconhecer os palestinos como genuínos parceiros de conversações de paz. Por mais que exista a impotência inerente à nossa condição de meros observadores de um conflito histórico, precisamos superar as limitações do que nos é imposto como verdade pelas vias comunicacionais de massa. Pensar a vida, mesmo que a vida do Outro.

2 comentários:

  1. Israel, como base avançada norte-americana no oriente médio, somente recuará em sua estratégia de dominância geo-política no momento em que sofrer revezes militares mais sérios e sua capacidade de ação/reação começar a se deteriorar, em função de um eventual declínio político-econômico dos EUA.
    Nesse cenário, que se encontra em fase embrionária, com a declaração da ONU pela criação do Estado Palestino (sem território!) e a compreensão da necessidade de unidade político-militar entre os palestinos, a ação mais efetiva de novos atores globais, como os países emergentes e poderosas organizações internacionais (incluindo as não-governamentais), será decisiva para impor limites à ação de Israel.
    Até que esse movimento tenha força suficiente para se fazer sentir, muito sangue ainda será derramado.
    Suspeito que a humanidade será exposta a toda essa barbárie, sem mudanças significativas, pelos próximos 20 ou 30 anos.

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  2. Muito interessante isso. Já faz um tempo tenho me debruçado sobre os textos do Foucault e uma das coisas que me deixam curioso é o distanciamento dele em relação ao Deleuze a partir da segunda metade dos anos 1970. Certa vez li em um lugar, não me lembro onde, que eles haviam tido diferenças em relação ao conflito Israel-Palestina, e que isso teria sido o motivo de algum rompimento, ou "esfriamento" na amizade etc. Sei que o Foucault era simpático à causa dos judeus e ao estado de Israel (em um texto incomum aos escritos dele, "Bio-histoire et bio-politique", ele chama, por exemplo, de vergonhosa a resolução da ONU que caracteriza o sionismo como um racismo), mas não conhecia o pensamento do Deleuze sobre o assunto, nunca havia achado nada, e esse texto, para mim, nesse sentido foi bastante esclarecedor.
    Parabéns pelo blog, abs,

    Luiz.

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