Fred Block e a ideia do "Estado desenvolvimentista escondido"


O sociólogo Fred Block, professor da Universidade da Califórnia e um dos divulgadores das ideias de Karl Polanyi nos Estados Unidos, há alguns anos tem estudado o que ele chama de hidden developmental state, isto é, a emergência de uma política desenvolvimentista "escondida" nos EUA, focada em estratégias descentralizadas de apoio à inovação e empresas emergentes, com forte suporte governamental - algo que contradiz a ideologia fundamentalista de mercado, típica dos liberais estadunidenses.

A pesquisa começou em 2006 com apoio da Ford Foundation. Em 2007, Block finalizou o paper Swimming Against the Current: The Rise of a Hidden Developmental State in the United States, que foi apresentado em um workshop no campus de Berkeley da Universidade da Califórnia. No ano seguinte, uma versão definitiva foi publicada no jornal Politics & Society (v. 36, n. 2, junho de 2008).

Neste artigo, Block aprofunda a análise sobre o sistema nacional de inovação nos Estados Unidos e o papel do governo federal no financiamento de empresas de alta tecnologia através de programas conduzidos por agências específicas. A partir do tipo-ideal do Developmental Network State - uma modalidade de ativismo estatal identificada pelo sociólogo irlandês Séan Ó'Riain como apoio "mão na massa" em parceria com o setor privado, identificando caminhos promissores para a inovação e superação de barreiras tecnológicas -, Block explica a emergência de formas descentralizadas e ocultas de apoio estatal à inovação, especialmente após a criação da ARPA (Advanced Research Projects Agency) no Pentágono.

A experiência da ARPA, uma agência de pesquisa em tecnologia e computação, foi marcada por cinco características básicas: (i) uma série de escritórios pequenos, geralmente constituídos por cientistas de liderança e engenheiros, com liberdade orçamentária para apoiar ideias promissoras, (ii) postura proativa ao invés de retroativa, pois o objetivo era o de criar uma comunidade científica com presença nas universidades, no setor público e nas corporações com foco em desafios tecnológicos a serem superados, (iii) financiamento garantido para uma mistura de pesquisadores universitários, empresas nascentes (start-up firms), companhias estabelecidas e consórcios industriais, sem divisão entre "pesquisa básica" e "pesquisa aplicada", considerando que as duas estão intimamente relacionadas; (iv) apoio além do financiamento, focado na assistência à comercialização dos produtos vislumbrados em pesquisas; (v) realização de ligações construtivas de ideias, fontes e pessoas em torno de diferentes pesquisas e projetos. Em síntese, o modelo incluía a focalização de recursos, o agenciamento tecnológico e empresarial e a facilitação da criação de redes sociais entre pesquisadores e investidores (network ties).

Além da ARPA, na década de setenta um enorme projeto de pesquisa e desenvolvimento na área de genética foi criado pelo National Institute of Health (NIH). Além da pesquisa na área de DNA, o projeto tinha como missão incubar empresas nascentes focadas em biotecnologia. Em 1976, a partir dos laboratórios de pesquisa da Universidade da Califórnia financiados pelo NIH, surgiu a Genentech, fundada pelo bioquímico Herbert Boyer e o investidor de risco Robert Swanson, para comercialização de engenharia genética. A Genentech serviu de modelo para a parceria entre cientistas e empresários, com apoio do governo (a hoje conhecida "hélice tripla").

Na década de oitenta, os Republicanos criaram vários programas e aprovaram inúmeras leis para apoio à inovação, compartilhamento de infraestrutura universitária com empresas privadas e financiamento público de empresas nascentes focadas em biotecnologia e semicondutores. Dentre as mudanças, estão: (i)  Stevenson-Wydler Technology Innovation Act (1980): lei que encorajou a rede de laboratórios federais a engajar-se na direta colaboração com governos estaduais, universidades e indústria privada em pesquisa aplicada; (ii) Bayh-Dole Act (1980): lei aprovada pelo Congresso para encorajar universidades e pequenas empresas a perseguir a exploração comercial de novidades tecnológicas resultantes de pesquisas financiadas pelo governo federal; a legislação teve importante função simbólica na legitimação da estreita cooperação entre pesquisadores universitários e a indústria; (iii) Small Business Innovation Development Act (1982): lei que criou o Small Business Innovation Research Program (SBIRP), um consórcio entre a Small Business Administration e agências governamentais com amplo orçamento de pesquisa do Departamento de Defesa (Departament of Defense), Departamento de Energia (Department of Energy) e Agência de Proteção Ambiental (Environmental Protection Agency). Tais agências eram obrigadas a destinar 1,25% de seus orçamentos para apoiar empresas nascentes e de pequeno porte. O apoio inicial era de U$ 50.000,00, seguido de um apoio de U$ 500.000,00; (iv) National Cooperative Research Act (1984): lei que criou uma isenção antitruste para empresas privadas para engajamento em esforços cooperativos de pesquisa para desenvolvimento de novos produtos; (v) Program for Engineering Research Centers (1985): centros baseados em universidades desenhados para criar uma rede descentralizada de pesquisadores trabalhando em problemas concretos de tradução de novidades científicas em tecnologias utilizáveis; (vi) Federal Technology Transfer Act (1986): norma que criou a moldura jurídica dos Cooperative Research and Development Agreements (CRADA's) entre laboratórios federais e empresas privadas, que garantiu às empresas privadas o direito de explorar comercialmente descobertas de pesquisa originadas nestes laboratórios; (vii) Advanced Technology Program (1988): programa que garantiu bolsas e financiamentos federais para pesquisas do setor privado destinadas a comercializar novas tecnologias; (viii) Manufacturing Extension Program (1988): lei que autorizou o financiamento para uma rede de projetos manufatureiros; (ix) Defense Industrial and Technology Base Initiative (1991): O Defense Authorization Act autorizou o Critical Technology Institutes a avançar o desenvolvimento de tecnologias consideradas críticas para a segurança nacional dos EUA e competitividade econômica; (x) High Performance Computing and National Research and Education Network Act (1991): legislação criada para proteger a liderança estadunidense na alta performance de computação e redes. Tal norma alocou U$ 654 milhões em apoio à pesquisa no Departamento de Defesa e na National Science Foundation; (xi) Small Business Research and Development Enhancement Act (1992): lei que criou um programa no modelo do SBIR chamado Small Business Technology Transfer Program (SBTTR), fomentando a colaboração entre pequenas empresas e instituições de pesquisa como hospitais, universidades e laboratórios governamentais.

Segundo Fred Block, tal conjunto de ações contrariava o posicionamento ideológico dos Republicanos (fundamentalismo de mercado inspirado em Hayek e Friedman), motivo pelo qual tais programas foram muito pouco divulgados. Os Democratas, após a vitória de Bill Clinton, intensificaram o apoio a tais programas de apoio a empresas nascentes tecnológicas, mas não fizeram publicidade de tais políticas por dois motivos: (i) evitar o ataque ideológico dos Republicanos e (ii) não manchar a estratégia de política externa, focada na liberalização das economias dos países em desenvolvimento e defesa do discurso de "Estado-mínimo". Há, ainda, um terceiro aspecto, denunciado por Ha-Joon Chang em seu livro Kicking Away the Ladder (2002): os Estados Unidos sempre praticaram políticas industriais de apoio à inovação e competitividade, mas impuseram aos países em desenvolvimento um discurso de defesa do "livre mercado" e das regras internacionais de regulação (OMC, OMPI).

Para Block, as maiores empresas do século XXI contaram com alguma modalidade de apoio governamental nos Estados Unidos. A Google, por exemplo, surgiu de um projeto federal de financiamento em tecnologia executado na Universidade de Stanford e não do simples "espírito empreendedor" dos pesquisadores que desenvolveram o mecanismo de busca online. Ao contrário do seculo XX, no qual as inovações eram realizadas majoritariamente pelas grandes empresas, atualmente as inovações incrementais e de ruptura surgem de empreendimentos de colaboração entre o setor público e setor privado, em especial da hélice tripla governo-universidade-indústria.

O modelo inaugurado pela ARPA - posteriormente batizada como DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency) - e desenvolvido posteriormente por diversos projetos federais de fomento à inovação (como o National Science Foundation) possui quatro características e funções. A primeira é a de targeted resourcing, isto é, a função exercida pelo governo em construir ativamente sofisticados laboratórios que podem ser utilizados por cientistas e engenheiros para atacar tipos particulares de problemas, em parceria com o setor privado. A segunda função, segundo Block, é chamada de opening windows e refere-se ao Small Business Innovational Research e ao Small Business Technology Transfer Program. O sociólogo destaca o papel desempenhado pelos programas federais em financiar projetos inovadores e sinalizá-los para outros investidores de risco (venture capital firms). A terceira função é a de brokering e implica no agenciamento entre cientistas e engenheiros com aqueles que necessitam que problemas sejam resolvidos, isto é, o Estado assume a função de criar canais de comunicação entre cientistas e empresários. A quarta função é chamada por Block de facilitation, baseada no papel desempenhado pelo National Institute of Standards and Technolgy em definir padrões técnicos para acelerar a comercialização de novas tecnologias.

Para Block, há uma forma otimista e uma pessimista de enxergar a emergência do "Estado desenvolvimentista escondido". No lado otimista, vislumbra-se o quão notável é a estrutura institucional que está escondida ou que desenvolveu-se contra a corrente neoliberal e o papel desempenhado por tal estrutura na forma como a inovação ocorre na economia estadunidense. No lado pessimista, enfatiza-se que em razão do crescimento da estrutura institucional às sombras, o sistema possui falhas que limitam sua habilidade de apoiar e acelerar inovações desejáveis.

Segundo Block, cinco falhas do "modelo desenvolvimentista em rede" merecem ser melhor discutidas: (i) o déficit de legitimação democrática das escolhas de alocação de recursos; (ii) a instabilidade dos financiamentos em razão da ausência de um mecanismo de tributação diferenciado para empresas beneficiadas por programas federais (por exemplo, empresas bem sucedidas em razão do apoio federal poderiam ser obrigadas a repassar 5% do seu faturamento para um fundo público de investimento em empresas nascentes), (iii) a commoditização do conhecimento (superação dos atuais regimes de propriedade intelectual, tal como defendido por Yochai Benkler), (iv) a falta de coordenação dos programas federais de fomento à inovação e (v) a precarização do trabalho (low road labor practices), em razão da falta de apoio para os trabalhadores que irão produzir os insumos e materiais necessários para novas combinações inovadoras.

Os argumentos apresentados no artigo Swimming Against the Current foram somados a outros artigos e reunidos no livro State of Innovation: The U.S. Government's Role in Technology Development, editado por Fred Block em parceria com Matthew R. Keller, publicado pela Paradigm Publishers. O livro não está disponível no Brasil. Todavia, trata-se de leitura recomendada para aqueles que desejam entender as políticas industriais dos EUA na "economia baseada no conhecimento" e as estratégias de competitividade do país.

A história de sucesso do apoio do governo estadunidense à inovação tecnológica ainda é um tema pouco explorado na literatura de políticas industriais e de direito e desenvolvimento. No vídeo abaixo, Fred Block explica, em linhas gerais, os resultados de suas pesquisas. Os interessados em aprofundar o estudo nesta área podem tomar o trabalho de Block como ponto de partida para análises comparativas entre Brasil e Estados Unidos.



No Brasil, poucos juristas e economistas têm discutido o papel do governo na criação de programas específicos de apoio à inovação e agenciamento de pesquisadores e empresários para parcerias público-privadas. É incerto se o modelo estadunidense pode ser repetido com sucesso em países em desenvolvimento. Há alguns dias, Mansueto Almeida (Ipea) publicou em seu blog o texto "Lições da Inovação", no qual chama a atenção para o modelo da agência estadunidense e a necessidade de o Brasil estruturar uma instituição semelhante: "Infelizmente, no caso do Brasil, não há nada remotamente semelhante a DARPA. Por exemplo, no nosso caso, o orçamento da defesa executado, em 2011, foi de R$ 61,2 bilhões, subdividido da seguinte forma: (1) R$ 17,5 bilhões com gasto de pessoal ativo; (2) R$ 29,1 bilhões com aposentados e pensionistas, (3) R$ 8 bilhões com custeio, e (4) R$ 6,5 bilhões com investimento. Se no Brasil houvesse uma agência de inovação ligada ao orçamento das Forças Armadas nos moldes da DARPA dos EUA, essa agência teria um orçamento perto de R$ 300 milhões – 0,5% do orçamento da defesa. Um valor que seria muito pequeno. Na verdade, poderíamos ser muito mais audaciosos e pegar recursos do Ministério da Ciência Tecnologia e Inovação (MCTI) e parte dos recursos que hoje mandamos para o BNDES para investir em inovação a fundo perdido".

A provocação de Almeida é válida. As experiências desenvolvimentistas "escondidas" dos Estados Unidos podem ajudar a entender melhor o papel estratégico do Estado na criação de canais de comunicação entre empresários e pesquisadores, bem como a estruturação de agências específicas de financiamento e compartilhamento de estruturas laboratoriais para solução de obstáculos tecnológicos importantes para os projetos industriais nacionais. Neste sentido, o estudo de Fred Block é fundamental para mapear o que os Estados Unidos fizeram, mas não querem revelar para o mundo.

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