O que é o movimento waratiano?


Luis Alberto Warat infelizmente ainda é um jurista muito pouco estudado no Brasil. Uma pena. Na opinião do português Boaventura de Sousa Santos (este sim, muito lido na sociologia jurídica), quem não conhece Warat sabe muito pouco sobre filosofia jurídica latino-americana, que vai muito além do mistificado Miguel Reale. Independentemente da qualidade ou sofisticação teórica produzida pelo pensador argentino, falecido em dezembro de 2010, o fato é que Warat, portenho que optou viver no Brasil e dedicar-se à estruturação da pós-graduação em Direito no país, produziu obras importantes sobre filosofia do direito, a relação entre direito e arte e formas mais humanas de solução de conflitos, como a mediação, "capaz de produzir devires de sensibilidade", como ele mesmo dizia.

É difícil dar um rol completo de temáticas da produção de Warat, visto que o autor flertava com diversas áreas e pensadores transgressores, em especial os franceses. Nas palavras de Jorge Fontoura (Instituto Rio Branco), "Warat foi um iconoclasta lúdico que transcendeu os limites da leitura jurídica tradicional. Sob as vestes de professor de filosofia do direito, versava semiótica, antropologia, sociologia e psicanálise, para um alunado extasiado diante de tanta sabença e novidade". Difícil discordar de Fontoura. Os títulos das obras de Warat deixam claro essa versatilidade de suas áreas de pesquisa, sempre em transformação.

Warat não foi um teórico, mas sim um errante. Talvez não haja uma "teoria waratiana", mas sim uma "postura waratiana" de enxergar e criticar o racionalismo científico e o positivismo jurídico, em especial o senso comum teórico dos juristas, em defesa de uma gramática dos desejos e da liberdade intelectual. Como legado, Warat não deixa uma obra sistematizada, mas sim os impactos de seus textos e aulas na Universidade Federal de Santa Catarina, na Universidade de Brasília, na Universidade Federal de Santa Maria e na Universidade Federal do Paraná, locais que teve mais influência. Ao contrário de muitos pares, que também eram juristas práticos (advogados, juízes, promotores, etc), Warat dedicou-se integralmente à pesquisa (inicialmente à compreensão e crítica do pensamento kelseniano) e à docência. Foi um legítimo acadêmico latino-americano, mas de postura rebelde. Como ressaltou Fontoura, "professor dentro e fora da aula, [Warat] considerava o ensino pacto essencial de liberdade, indissociável do livre-arbítrio. Por isso não fez concessões, rasgou os programas e ensinou o que quis, confiando no discernimento privilegiado e na capacidade dos que o escutavam".

No ambiente acadêmico-jurídico brasileiro do século XX, Warat ficou conhecido por ter fundado a Associação Latino-americana de Metodologia do Ensino do Direito (Almed) na década de 1970. A associação tinha como objetivo, entre outros, a "reformulação das bases epistemológicas da produção do conhecimento na área do direito, considerado como fetichizante". A Almed foi responsável pela realização das "Jornadas Latino-americanas de Metodologia do Ensino do Direito", que, em 1981 no Rio de Janeiro, na sua sexta edição, promoveu um encontro com juristas estrangeiros de orientação crítica, entre eles Antoine Jeammaud e Michel Miaille, autor do livro Une Introduction Critique au Droit (1976). Warat foi reponsável por introduzir Carlos Alberto Platino e José Ribas Vieira a Jeammaud e Miaille, que orientaram os juristas brasileiros em estudos de pós-graduação na França. O próprio Warat, em 1982, realizou uma turnê acadêmica em Montpellier, Lyon, Grenoble, Paris, Sant-Etienne e Nice. No mesmo ano, a revista Procès, referência do movimento crítico francês, publicou uma edição especial dedicada à abordagem crítica do direito na América Latina. Nesta edição, foi publicado o clássico texto "Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas", reprisado na revista Sequência da UFSC. Na opinião de Roberto Fragoso, Warat é o elo entre o movimento Critique du Droit, cujo objetivo consistia em fazer uma leitura do direito fundada no materialismo histórico dialético de forma a inserir o direito em uma teoria da produção da vida social, e algumas "escolas críticas" no direito brasileiro (cf. o excelente artigo 'O movimento Critique du Droit e seu impacto no Brasil').

Mas Warat não se prendeu à orientação crítica de inspiração francesa. Como sustenta Fragoso, após diagnosticar que a crítica que se fecha em um marco teórico específico termina em um beco sem saída, Warat "dialoga com a psicanálise e com o surrealismo, convencido de que este último lhe possibilita a construção de uma nova visão sobre o direito, uma visão que ele reputa emancipatória". Em 1988, o jurista argentino anunciou o seu "Manifesto do Surrealismo Jurídico" e aprofundou as reestruturações da grade da pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina (ajudando a criar novas disciplinas como Lingüística e Teoria da Argumentação, Epistemologia Jurídica, Direito e Ecologia Política, Direito Ambiental, Direito Sanitário, Pesquisas em Direito e Psicanálise, Teoria Jurídica Contemporânea, Pesquisa em Filoestética e Direito). O espírito reflexivo e inovador da UFSC é declarado por Luis Alberto Warat, em um texto de 1992 intitulado Mal-Estares de um Final de Milênio, no qual ele afirma: "Ser inovador significa, basicamente, tentar interpretar e avaliar o novo, sem atenuar nem suprimir sua pluralidade. Acredito que somos o único curso de pós-graduação em direito tão abertamente direcionado para o novo. O novo e o interdisciplinar formam parte de nosso capital permanente, é - dir-se-ia - nosso mandato institucional".

Warat embarcou então em uma antropofagia interdisciplinar (para-além do discurso acadêmico, pois voltado também à literatura), mesclando Julio Cortázar com Giles Deleuze & Félix Guattari, Milan Kundera com Michel Foucault, Jean Baudrillard com "um marxismo capaz de redefinir-se aceitando o amor e o desejo como dimensões políticas", pois o marxismo, num excesso economicista como alegam Deleuze e Guattari, não atentou para as razões do desejo na constituição da realidade. Na década de 1990, Warat definiu uma nova proposta, a Filoestética, isto é, o amor simultâneo pela filosofia e pela poética. Em resumo, "uma filosofia carente de homogeneidade, que renuncie a fazer o elogio das certezas, que abandone os claustros universitários para ir ganhando a rua, que se vá definindo pelas singularidades que atravessa e que terá inumeráveis pontos de enfrentamento, núcleos duros de instabilidade. Uma filosofia da praça pública que tente encontrar seus fundamentos, precisamente nos lugares que foram excluídos pelos controles metódicos do modelo filosófico das certezas. Uma filosofia que para transitar na rua terá que relativizar o rigor de seus discursos incorporando a estética como meio de expressão, a psicanálise como estratégia de interpretação, a cartografia (no lugar da teoria) como produto (em permanente processo de recriação) e a criatividade como destino: verdades carnavalizadas, fora do lugar instituído, para elas, pela mentalidade cientificista".

O desafio proposto por Warat era o de aproximar a filosofia acadêmica da filosofia espontânea da quotidianidade: "Sustento o valor de uma filosofia que troque a contemplação pela criatividade, que substitua um modelo abstrato por uma permanente observação inaugural; uma filosofia que olhe as coisas do mundo como se fosse pela primeira vez, num permanente retorno de um olhar inicial. Um olhar intempestivo (como diria Nietzsche), sem os fantasmas da antecipação materna. O olhar criativo. O olhar que, acredito, unicamente pode ser alcançado através da estética", escreveu ele há 20 anos.

Entre 1982 e 1992, Luis Alberto Warat deu uma enorme guinada, passando da crítica ao senso comum teórico à filoestética, incluindo neste trajeto manifestos pela "carnavalização do direito" e pelo "surrealismo jurídico". O risco que o jurista correu foi grande. Ao se virar contra o racionalismo aplicado à filosofia e o direito, foi ignorado pelos círculos acadêmicos, sempre preocupados com a temática dominante. "Graças a esta postura docente fui condenado pela tribo dos lógicos, estereotipado como um professor em eterna dependência do delírio. E poderiam dizer agora que o delírio - e não por minha causa - ameaça converter-se em epidemia", afirmou Warat.

Mas Warat foi precavido. Ao invés de esperar o reconhecimento de seus pares, tratou de estruturar, por conta própria, um espaço para divulgação de sua radical proposta filoestética. Trata-se do movimento "Casa Warat", originalmente criado em Buenos Aires e pensado como uma rede de casas de reflexão, sem estrutura organizacional ou hierarquia. A trajetória da "Casa Warat" é contada por dois de seus membros, Eduardo Rocha e Marcia Puydinger de Fazio: "nos últimos anos de sua vida, Luis Alberto Warat dedicou-se à construção do Movimento Casa Warat, uma rede de “casas”, ou seja, lugares de acolhimento, que funcionam autonomamente, mas integradas, constituindo um rizoma. São responsáveis por desenvolver ações de acordo com sua proposta, o neosurrealismo. Procura-se questionar o espaço acadêmico por meio da carnavalização, para isso utiliza-se de estratégias como os saraus surrealistas; os cafés filosóficos; encontros de literatura e cinema; o estudo sistemático de autores que fundamentam a proposta: Onfray, Bauman, Foucault, Barthes, Bakhtin, Maffesoli e outros. Atualmente, há três Casas em funcionamento, em Goiás, vinculada à Universidade Federal de Goiás, Campus Cidade de Goiás; em São Paulo, composta por estudantes da graduação e pós-graduação, mestrado e doutorado, de Direito da USP; e em Buenos Aires, sem vínculos com nenhuma instituição de ensino".

A proposta da Casa Warat não está centrada no estudo do direito, na produção normativa ou na formulação e aplicação das leis, mas "propõe-se a trabalhar com a subjetividade do jurista". As questões levantadas por Rocha e Fazio, inspiradas pela biopolítica foucaultiana, indagam o modo como os juristas pensam o fenômeno jurídico, ignorando a questão da subjetividade: "As leis, antes mesmo da sua aplicação, já se realizaram nos corpos daqueles que a submetem e foram submetidos por elas. Então, por que continuamos pensando os macro-efeitos, as macro-produções legais, sem discutir os efeitos biopolíticos? Por que as teorias política, filosófica e jurídica descartam essa dimensão de suas análises? Por que esquecemos a estrutura de poder que molda os corpos, e criticamos apenas sua dimensão pública? Por que a categoria subjetividade passa a largo das discussões jurídicas? (...) O que é a subjetividade? Como ela se relaciona com os diversos campos do conhecimento? Como ela é moldada e oferece resistência aos fenômenos do poder? Essas são algumas indagações que devem ser enfrentadas".

O manifesto dos novos waratianos é apaixonado, em defesa da transgressão. No texto explicativo sobre o movimento Casa Warat, publicado em 2011 na revista Direito & Sensibilidade, Rocha e Fazio afirmam: "Qual indivíduo, qual sujeito este encontro cartográfico chamado Casa Warat pretende formar? O criminoso. Não queremos nos tornar estudantes, professores pinguinizados: seres que agem da mesma forma e sempre obedecem ordeiramente às regras. Queremos criar sentidos novos e valorosos, pois ser criativo está diretamente associado à transgressão do que está posto. É questionar os processos normalizados, é resistir aos caminhos dados; a resistência torna-se o caminho. É agir contra a violência, que marca a ética do guerreiro. É ter sempre como horizonte quotidiano a insurgência civil".

É com esta perspectiva que ocorre anualmente o Encontro Internacional do Movimento Casa Warat, que este ano (4ª edição) acontecerá em São Paulo, no feriado da Independência. O encontro é uma oportunidade para membros de diversas "Casas Warat" se encontrarem e levarem adiante a proposta filoestética do falecido pensador portenho. A programação deste ano contém eventos distintos dos tradicionais encontros acadêmicos, enclausurados em prédios universitários.

Na sexta-feira (07/09), às 14h, haverá uma dinâmica de abertura intitulada "Cronopiando na cidade: o que há em São Paulo para além do concreto?", que será realizada no Vão livre do MASP – Av. Paulista. Às 17h acontecerá o Café Filosófico “Cidade e Sensibilidade”, com os facilitadores Wilson Levy (SP) e Leopoldo Fidyka (Argentina). O café será no Centro Cultural São Paulo (Ao lado do Metrô Vergueiro). No sábado (08/09), os waratianos farão um almoço, às 13h, seguido do Painel "Práticas waratianas - Qual a relação possível entre as instituições e a sensibilidade?", coordenado por Marcio Berlaz (MP-PR). O local será o Ecomercato (Restaurante dentro do Edifício Copan - Av. Ipiranga, 200). Às 17h, no Café Girondino (Ao lado do metrô São Bento - Centro), acontecerá o  painel “O movimento waratiano”, que contará com os facilitadores André Copetti, Jaqueline Sena, Eduardo Rocha, Mariana Galvão e André Jorgetto..


O encontro encerra no domingo (10/09), com um balanço e definição de metas, no Café da Pinacoteca (Ao lado do Metrô Luz). Obviamente, haverá uma festa no sábado. Afinal, os waratianos compartilham da velha ideia grega de que um debate intelectual é muito melhor quando acompanhado de vinho ou alguma bebida dionísica. A Casa Warat, aliás, conta com um Merlot da Bodega de Coppetti, lançado um ano antes da morte de Luis Alberto. Suponho que o argentino sabia desfrutar os prazeres da vida, como os artistas geralmente sabem. Seu corpo se foi, mas suas ideias ficam. As casas e o encontro são a prova de que, apesar da resistência dos ortodoxos, Warat vive.

3 comentários:

  1. A primeira coisa que vem na minha cabeça quando comentam do Warat é a "mulata fundamental"! Hahaha.

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  2. Zanatta, jamais imaginaria que no direito houvesse tais sujeitos, Muito bom saber.

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