Mangabeira Unger: um teórico incompreendido no Brasil?

Imaginar e reinventar as instituições, rebelar-se contra o racionalismo das ciências sociais em favor de um experimentalismo institucional que supere o fetichismo que possuímos sobre democracia, sociedade livre e economia de mercado. Essa é uma das temáticas centrais das reflexões do pensador brasileiro Roberto Mangabeira Unger, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, militante político e autor de inúmeros livros sobre filosofia, teoria social, direito e economia.


O nome de Unger voltou a ser comentado nos círculos acadêmicos e intelectuais após sua aparição no (quase sempre excelente) programa Roda Vida, da TV Cultura. No dia 16 de julho, uma segunda-feira, ele foi recepcionado nos estúdios da emissora pelo apresentador Mario Sergio Conti para um debate sobre suas ideias e formulações teóricas e sua opinião sobre temas polêmicos de diversas áreas. Nesta edição do programa, foram chamados para compor a banca o professor Ronaldo Porto Macedo Júnior (Faculdade de Direito da USP e da Escola de Direito da FGV-SP), o repórter Sergio Leo (jornal Valor Econômico), o editor-adjunto de política Conrado Corsalette (jornal O Estado de São Paulo), o filósofo Vladimir Safatle (Departamento de Filosofia da USP) e a editora de economia Carla Jimenez (Isto É Dinheiro). Além, é claro, da participação do cartunista Paulo Caruso, que realiza o registro bem humorado da entrevista através de desenhos sobre o convidado ou assuntos debatidos.



Em quase uma hora e meia de debates - que podem ser vistos acima -, Unger foi questionado sobre variados temas, incluindo (i) as eleições nos Estados Unidos e sua manifestação contra seu ex-aluno Barack Obama (cf. o vídeo "Beyond Obama", no qual Unger critica a ausência de progressismo dos democratas e as semelhanças com o programa dos republicanos), (ii) a multiplicidade de partidos políticos brasileiros e a hegemonia de PT e PSDB, (iii) os resultados de sua participação no governo Lula através da Secretaria de Assuntos Estratégicos, (iv) a fragilidade das inúmeras políticas industriais utilizadas pelo governo federal para enfrentamento da crise econômica, (v) o conteúdo de seu projeto para reforma da educação no Brasil, (vi) o significado de sua tese de democratização da economia de mercado, (vii) as semelhanças históricas e institucionais entre Brasil e Estados Unidos, (viii) a omissão dos intelectuais brasileiros como referências de sua formação teórica, (ix) a profusão de vozes proféticas no Brasil em termos de religiosidades, (x) a vitalidade do empreendedorismo das classes emergentes do país, (xi) a necessidade de transformação dos arranjos institucionais que regulam a vida social, (xii) a importância do jurista de informar à discussão pública sobre as alternativas institucionais da sociedade, (xiii) a possibilidade de pensar em regimes alternativos de propriedade privada em uma nova economia de mercado, (xiv) a sua experiência como consultor do governo de Rondônia, em especial na tentativa de reestruturação do ensino médio em busca de um modelo analítico e capacitador, e (xv) a necessidade de rebeldia intelectual brasileira contra as tendências dominantes do pensamento mundial.

Uma síntese do debate foi feita pelo mestrando Tiago Medeiros, da Universidade Federal da Bahia, colaborador do blog Poética Pragmática. Neste texto, Medeiros nota a incompreensão dos jornalistas com relação às teses formuladas por Mangabeira Unger nos últimos anos e a difícil classificação do autor dentro de uma linha estanque de pensamento: "Em linhas gerais, Unger defende uma posição teórica que se centra no descongelamento das formas de vida na cultura, pela ação política sobre o conteúdo das instituições. Entende que as organizações e crenças que formam os indivíduos são por eles constantemente postas em cheque no curso de suas vidas, e, portanto, que a vocação autotransformadora dos sujeitos deve ser o leitmotiv da ação política -  depositando sobre as instituições o espírito de inovação que alterará a vida pública dos indivíduos e garantirá oportunidades para a maior parte das pessoas. Essa linha de pensamento, que o autor garante ser de esquerda (embora não marxista), é pouco compreendida entre muitos intelectuais e jornalistas (sobretudo, no Brasil, onde seu sotaque estrangeirado pesa muito mais do que a originalidade de suas ideias), o que justifica o perfil das perguntas feitas no debate" (cf. 'Roberto Mangabeira Unger no Roda Viva').

De fato, soa estranho a constante tentativa por parte de alguns convidados de focar em questões menores e não explorar a fundo as teses de Unger. É difícil imaginar que todos os convidados sejam leitores das obras de Mangabeira Unger ou que, ao menos, tenham uma ideia clara de qual é seu objetivo enquanto teórico social. A presente edição do programa Roda Viva, deste modo, levanta uma hipótese bastante significativa. Tal hipótese é que as ideias de Roberto Mangabeira Unger simplesmente não são compreendidas no Brasil. Em razão do desconhecimento das obras do autor, Unger é visto no país mais como uma figura folclórica da política (talvez em razão de seu alinhamento com Brizola, Ciro Gomes e, mais recentemente, Lula) do que como um pensador com ideias originais para a filosofia e para a teoria social progressista, lido e elogiado em sua singularidade por diferentes autores de peso no meio acadêmico ocidental, tal como Richard Rorty, Jürgen Habermas e Perry Anderson. Afinal, qual a causa do amplo desconhecimento no Brasil das ideias ("teoria social construtiva", "sociedade como artefato", "democracia desestabilizadora", "imaginação institucional") deste original pensador?

Não há como responder de imediato tal pergunta. De qualquer modo, é possível fazer algumas constatações que ajudam a entender por que tal pensador brasileiro não é escutado, lido ou estudado no seu próprio país. A primeira delas é que a formação intelectual e atividade profissional de Roberto Mangabeira Unger se deu, quase que integralmente, na Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, em um ambiente acadêmico distante da intelectualidade brasileira. Nos Estados Unidos da América, Unger relacionou-se com juristas de orientação de esquerda e, após a publicação de dois influentes livros no meio jurídico (Knowledge and Politics e Law in Modern Society),  participou dos debates que culminaram na criação de um novo movimento de orientação crítica, inspirado pelo realismo jurídico, que desestabilizou o status quo e as correntes dominantes liberais que tentavam hegemonizar o pensamento jurídico estadunidense. Tal movimento, cujo marco inicial é uma conferência organizada por David Trubek em Madison (University of Wisconsin) em 1977 que contou com a participação de acadêmicos de orientação crítica como Duncan Kennedy e Morton Horwitz, ficou conhecido como Critical Legal Studies. Os "Estudos Jurídicos Críticos", como são conhecidos no Brasil, tiveram seu ápice no início da década de oitenta em Harvard. Em 1982, Unger realizou nesta universidade uma palestra que posteriormente foi publicada em forma de livro pela editora de Harvard. Trata-se da obra The Critical Legal Studies Movement, que projetou a importância do movimento para as outras instituições de ensino jurídico dos Estados Unidos e da Europa. Após 1983, os acadêmicos engajados com o CLS fundaram novas linhas de pesquisa (teoria racial crítica, feminismo, etc), enquanto Unger começou a escrever sua obra-prima, Politics, dividida em três tomos. Neste período, no Brasil, Unger ficou conhecido por sua participação na elaboração do manifesto de fundação do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) - atualmente conhecido pelo seu caráter catch-all, segundo definição de Otto Kirchheimer, isto é, um partido que agrega políticos de diferentes orientações ideológicas. No país, portanto, a divulgação do nome de Mangabeira Unger se deu pela sua vinculação com o PMDB e não pelas suas ideias no campo da teoria social.

A segunda constatação é que o grau de leitura das obras de Roberto Mangabeira Unger é muito baixo no país, dentro e fora do ambiente acadêmico. Nas Faculdades de Direito, espaço privilegiado para a leitura de obras como O Direito e o Futuro da Democracia, são raros os planos de ensino de disciplinas de graduação que incluem textos de Unger. Exemplos que fogem à regra de amplo desconhecimento deste autor entre os alunos de direito são a Universidade de Brasília (UnB), que possui um grupo de estudos amplamente influenciado pelas teses ungerianas (Brasil e Desenvolvimento), a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que inclui textos de Unger na disciplina de Sociologia Jurídica (os programas de Jean-Paul Rocha e José Eduardo Faria, por exemplo), e a Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, que teve seu projeto de criação influenciado pela consultoria de Roberto Mangabeira Unger (cf. 'Uma Nova Faculdade de Direito no Brasil'). As publicações de Roberto Mangabeira Unger, originalmente em língua inglesa, têm sido traduzidas por Caio Farah Rodriguez, mestre em Harvard (sob orientação de Duncan Kennedy) e doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (sua tese, "Sentido, valor e aspecto institucional da indeterminação jurídica", é fortemente influenciada por Lon Fuller e sua ideia de formas alternativas de organização social). Atualmente, Rodriguez é professor da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, instituição que tem incentivado a divulgação das ideias de Unger no Brasil.

Esse cenário de ausência de leitura das obras de Roberto Mangabeira Unger no próprio ambiente universitário - espaço de excelência para tal atividade - é agravado pelo grau de abstração e densidade teórica das obras de Unger (uma colega de pós-graduação, que foi aluna de Unger na Harvard Law School, definiu bem a situação ao afirmar que "em nível de abstração, o Mangabeira opera a 10 mil pés, enquanto os juristas brasileiros estão acostumados a uma literatura que opera no máximo no nível dos 1 mil pés"). Há, ainda, um segundo agravante. Ao contrário das primeiras obras publicadas pelo pensador, não há citações ou menções expressas a ideias de autores clássicos da teoria social, justamente pelo grau de desenvolvimento da teoria ungeriana, que é própria. O autor, portanto, se afasta de correntes ou escolas filosóficas em razão da construção de uma teoria direcionada à imaginação institucional e aprofundamento da democracia. A impossibilidade de enquadramento de Unger dentro de um determinado grupo de pensadores - tais como os "pós-modernos" franceses - aumenta a chance de repulsa entre potenciais leitores marcados por uma espécie de dependência taxonômica, ou seja, aqueles que têm uma compulsão por rotulações e definição de modos de pensar em categorias estanques.

Há, por fim, uma terceira constatação que ajuda a compreender a pouca amplificação das ideias de Unger, não obstante o esforço de autores como Arnaldo Godoy Sampaio (cf. 'Notas para uma Introdução ao Pensamento de Roberto Mangabeira Unger', 'O Direito e o Problema do Fetichismo Institucional no Pensamento de Roberto Mangabeira Unger' e 'O Direito na Sociedade Moderna de Roberto Mangabeira Unger') e Carlos Sávio Teixeira (cf. 'Experimentalismo e Democracia em Unger' e 'Uma Filosofia Política para a Transformação') de disseminar na academia brasileira algumas teses ungerianas. Tal constatação, que é bastante superficial e a mais frágil até aqui apresentada, é que a ausência de carisma de Mangabeira Unger pode ser um fator que colabore para o desinteresse de potenciais leitores. A escrita apaixonada e esperançosa de Unger se contrapõe a seu semblante quase sempre tenso, a uma dicção não muito clara e a um estilo de oratória de confronto, quase impositivo. Unger não é simpático e é visto como arrogante por muitos professores e acadêmicos. Tais aspectos deveriam ser de menor importância, afinal o que está em jogo são as ideias de um pensador e não sua sociabilidade. Entretanto, não é segredo que a divulgação de ideias e teses depende de pessoas; e tais pessoas precisam manter laços de afetividade pelo conhecimento (uma poderosa ideia nietzschiana) ou por relações pessoais. Talvez Unger seja injustiçado por uma estranha noção contemporânea de que um pensador deve ser sociável, ou deve ter carisma, para ter suas ideias divulgadas.

Talvez chegará o dia em que Roberto Mangabeira Unger será reconhecido no Brasil como um dos grandes teóricos sociais contemporâneos, dotado de originalidade e capacidade imaginativa, tal como é celebrado atualmente em alguns círculos acadêmicos, como a Harvard Law School. Para que isto aconteça, é preciso que os leitores brasileiros deixem de lado seus pré-conceitos sobre o autor e se debrucem sobre sua extensa e complexa obra. Se o que está em jogo é o teor de suas ideias e a coerência de suas teses, é necessário deixar um pouco de lado sua filiação partidária e sua vinculação com o governo federal e compreender suas ideias. Para isso, é preciso paciência e leitura. Mãos à obra.

4 comentários:

  1. Eu mesmo nunca li um livro dele. Claro que achei cômico o fato dele ter afirmado em 2005 que PT era o gaverno mais corrupto da história do Brasil e após sua nomeação em 2007 dizer que se equivocara.

    ResponderExcluir
  2. Mas gostei muito dele falar contra ao sistema financeiro e em favor da industria.

    ResponderExcluir
  3. Você conheci o blog do discípulo de Unger?:
    jogue-fora-a-roupa-velha.blogspot.com

    ResponderExcluir
  4. Prof. Unger é muito articulado, intelectual brilhante, pena que quando o assunto é o PT, ele fica irracional.

    ResponderExcluir

Mais lidos no mês