Duncan Kennedy e a crítica à globalização do ensino jurídico

Durante o penúltimo final de semana de março de 2012, precisamente entre os dias 23 e 25, ocorreu na Faculdade de Direito de Harvard um importante colóquio sobre o futuro da educação jurídica global, intitulado Global Legal Education Forum (veja o programa completo aqui). O evento reuniu grandes nomes do pensamento jurídico como Roberto Mangabeira Unger, Charles Sabel e Bryant Garth para discussão de aspectos polêmicos sobre o futuro da educação jurídica e contou com a presença de professores de brasileiros como Ronaldo Porto Macedo (USP/FGV-SP), Ronaldo Lemos (FGV-Rio) e Marcus Faro de Castro (UnB).

A preparação do evento foi realizada pelos candidatos a doutorado da instituição (S.J.D. Candidates), que publicaram, no YouTube, uma série de depoimentos de professores de direito sobre as possíveis revoluções no ensino jurídico global (cf., por exemplo, os depoimentos de Mangabeira Unger, Joaquim Falcão, Diogo Coutinho, Wang Yi, Miguel Maduro, Guido Calabresi, Mark Tushnet, Oscar Vilhena Vieira, Ronaldo Porto Macedo e Richard Epstein). Todos os professores e reitores que prestaram depoimento aos alunos de Harvard reconhecem que a educação jurídica está em um momento de ruptura do padrão de ensino voltado a questões domésticas, sendo atualmente direcionada a um ensino voltado a resoluções de problemas jurídicos internacionalizados. As questões centrais são: como treinar alunos de direito a resolver problemas que envolvem questões jurídicas internacionais? Como formar juristas que deverão trabalhar em equipes de advogados de diferentes países? Qual o tipo de metodologia necessária para um ensino jurídico global?

Dentre os depoimentos, chama atenção o discurso altamente crítico de Duncan Kennedy, professor da Faculdade de Direito de Harvard. Duncan é uma figura conhecida da "esquerda jurídica estadunidense" (pensamento jurídico progressista) e foi um dos fundadores do movimento Critical Legal Studies na década de setenta. Na sua palestra sobre globalização do ensino jurídico, Kennedy (uma voz dissidente que merece atenção) destaca alguns pontos interessantes.

O primeiro ponto de destaque é o fato de a crise econômica global ter acelerado alguns efeitos já produzidos nas últimas décadas nos Estados Unidos, em especial nas faculdades de direito. Trata-se do alto número de pessoas formadas em Direito sem emprego. Segundo Kennedy, 20% dos formandos não conseguem emprego na área jurídica, o que tem levado ao requestionamento do padrão de ensino e das oportunidades de trabalho no âmbito doméstico (cf. New York Times, 'Is Law School a Losing Game?').

Em síntese, Duncan Kennedy afirma que três tendências foram aceleradas após a crise de 2008: (i) a preocupação com custos (custos jurídicos) nas grandes empresas, (ii) a fragmentação dos serviços jurídicos (divisão do trabalho no sentido smithiano), e (iii) a desagregação da firma de advocacia enquanto união, levando a um constante processo de aglomeração e reorganização internacional.

O ensino jurídico tem sido colocado em cheque, pois as grandes empresas de advocacia (Law Firms) não acreditam que as universidades podem fornecer o que elas precisam em termos de formação de profissionais. Tal ponto de vista foi explicitado em um polêmico artigo escrito por David Seagel em novembro de 2011 para o New York Times ('What They Don't Teach Law Students: Lawyering'). Como afirma o repórter, os grandes escritórios de advocacia estão ensinando os juristas a advogar, pois as faculdades se limitam a discutir antigos casos da common law e conceitos teóricos pouco utilizados.

Para Kennedy, o discurso de reforma do ensino jurídico rumo a um padrão global está amplamente relacionado com o descontentamento das grandes firmas com a própria educação estadunidense e a necessidade de repensar um modelo padrão que possa ser exportado para o mundo todo. O maior interesse das grandes empresas transnacionais é o de disseminar um estilo de educação adequado ao modelo das American Law Firms para os países emergentes como Brasil, China, Rússia e Índia. A questão maior não se é isso vai acontecer, mas sim como vai acontecer.

Para Duncan Kennedy, as universidades de elite dos Estados Unidos estão extremamente preocupadas com a exportação do modelo estadunidense de (i) proteção ambiental, (ii) proteção de direitos humanos, (iii) direito societário e (iv) estruturação de ONGs. A preocupação dos responsáveis pelos altos cargos da academia estadunidense é de globalizar as técnicas de ensino do país (o que Kennedy chama de "globalizing the American style of legal education") e formar profissionais com as mesmas capacidades para resolver problemas jurídicos transnacionais. Se os mercados jurídicos nacionais forem tomados por grandes companhias multinacionais, haverá uma elevada demanda por profissionais (advogados formados no âmbito local) que tenham familiaridade com tal raciocínio jurídico globalizado.

Tal processo de generalização das técnicas de ensino jurídico dos Estados Unidos, entretanto, atende mais aos interesses das grandes companhias transnacionais do que aos anseios de alguns acadêmicos de reestruturar o ensino jurídico em face dos problemas atuais de busca de justiça social em um mundo amargado por uma longa crise econômica e aumento das desigualdades e tensões sociais.

Um segundo aspecto da americanização do ensino jurídico (a "dolarização da academia", nos termos de Yves Dezalay e Bryant Garth), é uma forte ênfase na policy analysis, elemento característico do modelo jurídico estadunidense do pós-guerra. Nesse aspecto, Duncan Kennedy explica como será a crescente influência do modelo de ensino dos Estados Unidos nas faculdades promissoras, como a Direito GV de São Paulo: "A americanização do ensino jurídico não significa que a Faculdade de Direito de Harvard vá dominar a Fundação Getúlio Vargas, mas sim que o modelo de análise de políticas públicas (policy analysis), o modelo de pequenos grupos de instrução com professores de dedicação exclusiva que possuem um papel importante no desenvolvimento de análise de políticas públicas, tanto para o governo como para as corporações, será dominante".

Para Kennedy, o problema central reside no fato de que esse modelo de conceber o direito e desenvolvimento (pensar em arranjos jurídicos mais eficientes e que promovam o crescimento econômico) deixa de questionar as desigualdades estruturais do capitalismo e não oferece uma alternativa ao paradigma dominante de desenvolvimento: "Tal modelo de análise de políticas públicas que será globalizado é essencialmente orientado para o status-quo, ou mesmo é reacionário, pois as técnicas de análise de políticas públicas que são consideradas prestigiosas assumem como premissa que existe um amplo interesse em eficiência, crescimento e desenvolvimento dentro da atual estrutura sistêmica de desigualdades radicais e hierarquia, e, de fato, na integração do mundo todo à economia de mercado nos termos existentes, o que desfavorece toda a periferia".

Talvez Kennedy seja demasiadamente esperançoso com um novo pensamento jurídico crítico (algo que, pela visão de mundo dos juristas contemporâneos, tardará a acontecer - uma espécie de "Global Critical Legal Studies"). Mesmo assim, Kennedy tem razão em um argumento: o modelo de ensino jurídico global não será crítico, mas sim altamente pragmático, voltado à resolução de problemas dentro do atual modelo de produção econômica  e atrelado aos interesses dos grandes escritórios de advocacia que progressivamente se tornam mais globalizados e influentes.

Afinal, seria possível repensar a educação jurídica em outros termos?

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