Do "Blog do Zanatta" ao "Razão em Crise"


O Blog do Zanatta não existe mais. Pelo menos, não mais com esse título.

Há alguns anos, martelava-me na cabeça a ideia de mudar o nome do blog, criado no endereço http://rafazanatta.blogspot.com precisamente no dia 21 de junho de 2007. Na época, valendo-me de referências locais (como um famoso blog de política da região), optei pelo formato Blog do + sobrenome do autor. O espaço surgiu sem maiores propósitos, como um espaço basicamente pessoal. Eu era um jovem de 19 anos cursando o terceiro ano do curso de Direito na Universidade Estadual de Maringá. Não havia uma razão específica, tampouco uma temática central ao blog. Escrevi no primeiro texto: "Minha intenção é escrever. Simplesmente escrever, ao invés de 'viajar' com a mão no queixo, apoiado na mesa, enquando não faço nada em minhas tardes no Estágio. Não estou falando que não faço nada no Estágio..mas sempre sobra um tempo. E, como diz meu velho pai, tempo é a gente que faz (...) Bom, é o início de uma jornada que pode render bons frutos. Refletir, pensar, questionar..tudo é válido".

Os primeiros anos: o blog como diário
Revendo os textos do primeiro semestre de existência do blog, percebo o quanto ele era intimista, voltado para poucos leitores. Os posts eram sobre música, filmes, porres, o cotidiano maringaense e a preparação da viagem para Londres. Havia muito pouco (quase nada) sobre direito ou questões políticas. Claramente, escrevia para o círculo de amigos. A linguagem era informal, às vezes chula.

Em 2008, o blog se tornou um espaço para compartilhamento de experiências na Europa. Quase todos os textos tratavam da rotina de um estudante em Londres. O propósito era informar a família e os amigos das novidades (esse trecho, escrito em março, ilustra bem esse aspecto: "Essa semana foi tranquila, ainda procurando oportunidades de emprego. Trabalhei um dia no RIBA, Royal Institute of British Architets, algo assim. Basicamente polir pratos e montar mesas. Um trampo digno, claro, mas monótono. O que salva mesmo é o radinho ligado tocando somente hits dos anos 70 e 80. All we hear is Radio Gaga. Bom, essa semana também rolou um lance lá no London Zoo. Aniversário de 180 anos do Zoológico! Fizeram um almoço para 51 convidados, o Fellow`s Lunch. Somente os apoiadores muito antigos do Zoo. Foi interessante trabalhar na entrada e no buffet com todos aqueles Sirs e Madams ingleses. Muito educados e gentis"). As reflexões eram de um rapaz de 20 anos vivendo alegremente como trabalhador braçal num país economicamente avançado, descobrindo lugares e sensações.

Após o término dos exames de proficiência e a compra de um notebook, em meados de 2008, o blog ganhou outra faceta. Além da rotina de trabalho no London Zoo, os textos passaram a abordar outros temas, como shows de rock, viagens para o interior da Inglaterra e para outras partes do Reino Unido, eventos culturais em Londres e noitadas em pubs. Após a estabilização, a vida londrina tornou-se mais dinâmica e cultural. Além de ter algumas libras para sair, tornei-me frequentador da Camden Library e aproveitei as horas livres da escola para ler algumas boas obras em inglês (Great Expectations, do Dickens, Nausea, do Sartre, Brave New World, do Huxley, Music for Chameleons, do Capote, Black Snow, do Bugakov, e outros). No final do ano, textos foram escritos de Berlim e Praga, durante um mochilão, relatando visitas a pontos turísticos. O blog ganhou um novo público: brasileiros em busca de informações sobre Londres e outras cidades europeias. Os acessos aumentaram e leitores desconhecidos passaram a deixar comentários.

A volta para Maringá: a guinada musical
O retorno para o Brasil implicou em mudanças no Blog do Zanatta. O antigo "diário de viagem" tornou-se um instrumento para divulgação de projetos musicais colocados em prática em Maringá e algumas poucas notas sobre o retorno à graduação em direito. Após um ano em Londres e com uma guitarra Fender Stratocaster nas mãos, 2009 começou com o projeto Ladrões de Bicicleta e com a formação da banda "Nanan & O Tanque". O blog ganhou outra cara, tornando-se um espaço para comentários sobre shows de bandas independentes da região do noroeste do Paraná e sobre novidades no mundo da música. Poucos eram os textos sobre direito, sobre o grupo de pesquisas da UEM (o grupo "Precedente") ou sobre o projeto literário Café com Prosa. Um post muito acessado deste período foi a lista dos "melhores álbuns de 2009", uma seleção comentada dos bons lançamentos daquele ano. O reflexo desta guinada musical foi a indicação do Blog do Zanatta para a votação dos "melhores do ano" da Sonic Flower Club, uma produtora musical de Maringá.

No início de 2010, o blog ainda servia a propósitos musicais. Os posts tratavam de eventos locais, shows do Nanan, bandas locais em ascensão (como o Nevilton) e eventos culturais de Maringá. Havia uma forte limitação localista nos textos. Na época, o blog contava com um subtítulo que dizia: Pensamentos na Cidade-Canção.

De fato, neste período estive muito ligado à produção cultural maringaense, em especial o rock feito por bandas locais, apesar de ter iniciado um projeto de pesquisa que, sem saber, iria mudar o rumo da minha vida.

Pensamentos econômico-jurídicos: a influência da pesquisa científica
A partir de março de 2010, o teor dos textos passou a ser fortemente influenciado pela redação da monografia de conclusão do curso de Direito, cujo tema era a influência do Banco Mundial na reforma do judiciário brasileiro. Há um relato interessante, porém longo, que ilustra bem esse momento de transição: "Estou entrando numa daquelas fases em que o Thiago Soares, do blog Espora de Galo, entrou no ano passado, ao encarar o trabalho de conclusão de curso. (...) Tenho respirado Direito. Deixei de lado o livro A Queda, de Albert Camus, para ler os artigos de Ronald Coase e sua teoria dos custos de transação (The Problem of the social cost, 1960). Parei de escutar e resenhar meus queridos discos de rock independente para ouvir palestras no YouTube de Richard Posner, e sua teoria da maximização do bem-estar social sob o viés econômico. Deixei a Fender Stratocaster de lado para dedilhar folhas e folhas de artigos sobre as origens de Escola de Chicago, Law & Economics, e sua conseqüente contraposição, a Critical Legal Studies. Enfim. Tenho concentrado meus esforços para buscar uma visão crítica da Análise Econômica do Direito e das recentes reformas institucionais (principalmente a do Judiciário), para enfim ver a real influência do Banco Mundial (das reformas de segunda geração e dos valores impostos pelos documentos técnicos 319 e outros) no cenário brasileiro". Uma grande mudança estava em curso.

Ao invés de bandas, o blog passou a tratar de filósofos e pensadores de períodos distintos, como Jeremy Bentham e Slavoj Žižek. Além de autores, os textos passaram a versar sobre eventos políticos, como a crise econômica da Grécia e o plano de austeridade britânico.

O fato de ingressar na pesquisa científica com seriedade implicou em participações em eventos acadêmicostraduções de artigos científicos e textos sobre direito e desenvolvimento. A partir do segundo semestre, com a monografia em vias de finalização e a participação nos processos seletivos de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná e da Universidade de São Paulo, o blog definitivamente ganhou um novo formato, mais voltado para assuntos jurídicos e questões políticas, impulsionado pelas revelações do Wikileaks e pelos protestos europeus contra o desmonte do Estado de bem-estar social. Em dezembro, uma parte de minha vida acadêmica havia se encerrado, com a finalização e defesa da monografia, a conclusão do bacharelado em Direito e o ingresso no mestrado na USP. Enquanto isso, o mundo começava a entrar em chamas.

2011, um ano chave
Janeiro foi um mês de mudanças pessoais, mas, sobretudo, globais. Enquanto alugava um apartamento em São Paulo com minha namorada e dois amigos, o Oriente foi chacoalhado pela revolta tunisiana e pela Primavera Árabe - os acontecimentos recentes mais importantes do mundo árabe. Emergiu uma demanda por uma forma de democracia adequada às novas formas de expressão e necessidades da multidão. Meses depois veio a invasão da Líbia, marcada pelo imperialismo humanitário. No Ocidente, agravaram-se os sinais da crise sistêmica global e novas formas de protestos (organizados em rede) eclodiram nas principais capitais europeias - o que influenciou muitos textos sobre reivindicação política na sociedade informacional.

O fato de cursar a pós-graduação em Direito na Universidade de São Paulo também impactou no teor dos textos publicados no blog. Apareceram posts sobre passado e futuro da pós-graduação no Brasil, seminários, aulas na São Francisco e eventos do PET de sociologia jurídica. O exame para ingresso na Ordem dos Advogados do Brasil também surtiu efeito e resultou no texto mais acessado do blog: um sobre a prova prático-profissional de direito civil, com mais de 7 mil acessos.

O blog ficou mais sério e passou a tratar de temas delicados como a liberdade de expressão (como a marcha de liberdade em São Paulo), a ascensão da extrema-direita na Europa, trabalho imaterial num regime pós-fordista, protestos contra o sucateamento da educação pública (o exemplo é o da UEM), o agravamento da crise econômica mundial após julho e a resposta desenvolvimentista do Brasil. O espaço deixou de ser utilizado para anotações pessoais sobre o cotidiano e se tornou um veículo para compartilhamento de fatos, histórias, artigos e vídeos pouco divulgados na mídia tradicional. Num mundo em rápida transformação e aprofundamento de uma crise não compreendida - que já é considerada a mais grave desde a Grande Depressão -, a economia passou a pautar os textos, focalizando também as relações de poder.

A imersão na sociologia jurídica e na pesquisa em direito e economia trouxeram modificações inevitáveis no padrão dos textos.

2012 em diante: o mundo e a razão em crise
Se existe uma palavra que é repetida diariamente nos jornais mundo afora, esta palavra é crise. Buscando uma definição para tal palavra, o dicionário Aurélio fala em "momento perigoso ou difícil de uma evolução ou de um processo; período de desordem acompanhado de busca penosa de uma solução". Fala também em crise econômica, como uma "ruptura periódica do equilíbrio entre produção e consumo, que traz como conseqüências desemprego generalizado, falências, alterações dos preços e depreciação dos valores circulantes". Parece ser a descrição perfeita do mundo em que vivemos, não?

Há um mal-estar generalizado, marcado pelo pessimismo e pela descrença de que o modelo econômico é sustentável a longo prazo. Os ambientalistas há anos alertam que o capitalismo industrial (e o pós-industrial) levará a humanidade ao abismo, pois tem acelerado em ritmo alucinante a eliminação de recursos naturais escassos, bem como tem provocado rupturas no balanço climático deste enigma chamado Terra. Por outro lado, analisando o aspecto social do homem dito moderno, muitos reconhecem que os projetos iluministas fracassaram e que a racionalização do mundo não levou à emancipação, justiça social e convivência harmônica entre os povos. Pelo contrário: virtudes intelectuais levaram a barbáries e inúmeras guerras foram iniciadas por interesses calculados. O progresso científico e filosófico foi estrondoso, mas, diante da ausência de perspectiva futura, é difícil aceitar tranquilamente a proposição de Amartya Sen de que "vivemos num mundo melhor". Sua análise é certa: vive-se mais e com melhor qualidade de alimentação e trabalho nos países periféricos. Mas qual desenvolvimento deveria ser atingido? O dos países "desenvolvidos"?

O momento é único, porém dramático. A razão está em crise, mesmo que poucos reconheçam. Os filósofos há décadas tratam deste tema, mas a cada dia fica mais claro para um cidadão comum (como eu) que a humanidade enfrenta um momento perigoso, marcado pela interconexão de forças globais e pela exaustão de um modelo que pretendia solucionar conflitos sociais através da promessa de crescimento ilimitado. Impossível que esse período de transição não reflita nos textos publicados neste blog, mesmo que de forma sutil e sem a sofisticação analítica de alguém que tenha uma vida dedicada a tal análise.

Daqui pra frente, como dizia Roberto, tudo vai ser diferente.

Blog "Razão em Crise"
Diante do exposto (a mudança de foco dos textos e a influência da conjuntura global), não há razão para manter o antigo nome deste blog. A partir de hoje, ele segue provisoriamente com o título "Razão em Crise" e provavelmente terá como temática central textos sobre democracia, direito, economia, política e educação. Não terá uma abordagem filosófica sobre a "crise da razão" no sentido acadêmico do termo, mas  seguirá com esse título por ele capturar (muito precariamente) o espírito de um tempo.

É provável que cada vez mais esse blog se torne impessoal e capture debates sobre temáticas complexas, que não obtenham respostas fáceis. De fato, não me interessa compartilhar minha vida pessoal aqui. Ficarei muito mais feliz se esse blog puder integrar aquilo que tem sido chamado de "mídia independente", capaz de produzir conteúdo e informar pessoas que se aventuram na busca de informações compartilhadas de forma alternativa aos grandes veículos. Eis o motivo da mudança do nome, um sinal de amadurecimento. O autor deixou de ser um estudante (e guitarrista amador) e tornou-se um advogado, pesquisador e, agora, professor. O blog apenas acompanhou essa intensa mudança em tempos interessantes.

Que a reflexão continue. E que a transição não nos seja dolorosa.

3 comentários:

  1. Esse texto me lembrou o prefácio (ou introdução?) de Hobsbawm à sua autobiografia. Lá ele dizia algo mais ou menos assim: Aqui, o leitor não encontrará confissões, fofocas e martírios pessoais. E sim a evolução intelectual de um homem que viveu uma época interessante.

    As palavras eram totalmente diferentes, claro, há muito tempo li trechos desse livro. Mas acredito que a analogia seja válida.

    É admirável a dedicação que você tem com este blog. Na verdade, essa fidelidade é com a reflexão, com a crítica, com o compartilhamento - e é isso que me admira mais.

    Fiquei realmente contente ao ler este texto. A paciência de voltar, escanear toda a sua vida blogueira, o cuidado com cada link, cada texto, como exemplo, e, acima de tudo, a capacidade de sintetizar um espírito, um processo de amadurecimento.

    Essa percepção de transformação não é pra todos. Perceber a evolução, buscar a evolução é conquista de raros indivíduos. Não deixar que a vida carregue a sua existência como uma enxurrada forte, tão turbulenta que impossibilita a percepção do que está acontecendo em sua volta e em si próprio.

    Isso te descreve bem - um homem tentando compreender as turbulências a sua volta, com paciência, razão, serenidade.

    Não quero fazer filosofia de botequim, mas é que o texto é realmente emocionante pra alguém como eu, que tem o privilégio de ter ao lado homem tão completo.

    Parabéns pelo crescimento, e boa sorte com a nova perspectiva "Razão em Crise".

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  2. Zanatta, nos encontramos dia desses pelas ruas de Maringá, e infelizmente o tempo era curto e não pude fazer um comentário que cabe aqui nesse momento. A evolução dos teus textos é nítida. Acompanho aqui o blog desde que nos conhecemos na 'cena' rock da cidade e nos últimos tempos tenho ficado bem feliz com o que leio por aqui. Ótimo conteúdo, sem dúvida.

    Parabéns pelo foco no blog, compartilhar conhecimento adquirido é sempre bom.

    PS: Lindo o comentário da Priscila =D

    Abração.

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  3. cara, depois de ler esse texto ontem à noite, fui dormir.
    mas antes eu peguei aleatoriamente um livro aqui e abri na página que estava marcada.
    reproduzo:

    "Poucos se lembram hoje em dia que a palavra 'crise' foi cunhada para designar o momento de tomar decisões. Etimologicamente, tem muito mais a ver com o termo criterion - princípio que usamos para tomar a decisão certa - do que com a família de palavras associadas a 'desastre' ou catástrofe' na qual costumamos hoje localizá-la.
    [...]
    'Estar em crise' é a maneira costumeira e talvez a única concebível de autoconstituição (Castoriadis) ou autopoiesis (Luhmann), de auto-reprodução e renovação, e cada momento na vida da sociedade é um momento de autoconstituição, reprodução e auto-renovação.
    Tudo isso harmoniza-se com a razão." (BAUMANN, Em busca da política, p. 136-146)

    então, meu caro, saia dessa bad pq estar em crise é normal, todos estamos em crise a todo momento!

    grande abraço

    Michel

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