As velhas provocações da Benetton


As polêmicas fotos estampadas nesta quarta-feira nos principais site de notícias do globo mostrando a nova campanha publicitária da United Colors of Benetton, intitulada "Unhate" - que enfureceram o Vaticano ao utilizar uma montagem do Papa Bento XVI beijando a boca do líder islâmico Ahmed el Tayyeb -, retomam um velho debate sobre os limites de propaganda e a liberdade de expressão (veja as fotos aqui). Apesar do bafafá, não é a primeira vez que a Benetton incita esse tipo de discussão no mundo globalizado.

Nas últimas décadas, a empresa fundada por Luciano Benetton em Treviso, na Itália, tem causado enormes polêmicas com suas campanhas de marketing, principalmente entre os mais conservadores. De fato, desde a contratação de Oliviero Toscani, que trabalhou na empresa de 1982 a 2000, a companhia tem optado por uma estratégia de comunicação na qual os grantes temas, e não as roupas, assumem o papel principal.

Na década de noventa, a Benetton "chocou" o Ocidente - e era justamente essa a estratégia declarada pela empresa - ao iniciar uma série de campanhas sobre desastres ambientais, AIDS e racismo. Os pôsteres e outdoors criados por Toscani não exibiam peças de roupa, como as tradicionais campanhas do mundo fashion, mas sim animais cobertos de petróleo e piche, pessoas portadoras do vírus da AIDS definhando no leito de morte, corpos nus e outras imagens que inspiravam reflexões sobre temas polêmicos (como, por exemplo, a imagem de duas mãos algemadas, uma branca e uma negra, e a fotografia de uma menina com o rosto coberto de líquido esbranquiçado, fazendo alusão à violência sexual infantil). As campanhas circularam a Europa e provocaram reações extremadas no público-alvo. As vendas aumentaram, mas a estratégia publicitária também gerou protestos por parte de entidades religiosas, associações de portadores do vírus da AIDS e de órgãos de proteção à criança e adolescente.

Obviamente, as campanhas da Benetton foram atacadas pela via judicial. Uma das primeiras discussões levantadas foi que a campanha publicitária era abusiva por veicular imagens destoantes dos produtos (por exemplo, jeans ou roupas) e gerar discussões sobre questões polêmicas, como no caso da imagem do pato coberto de óleo. As empresas concorrentes alegavam também que a utilização de imagens chocantes era uma forma desonesta de chamar a atenção do público para a marca, o que implicava naquilo que é conhecido no direito concorrencial como unfair competition.


Na Alemanha, a propaganda foi considerada abusiva, numa ação decidida em primeira instância, por utilizar de apelo a questões ambientais para chamar atenção do consumidor. No Brasil, uma argumentação contra a campanha da Benetton poderia ser utilizada (forçando um pouco a barra, é claro) valendo-se do "desrespeito a valores ambientais", tomando por base o artigo 37, parágrafo 2º, do Código de Defesa do Consumidor, que diz: “Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.(...) § 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança”.

Em 1995, o caso chegou à Corte Federal de Justiça (Bundesgerichtshof, algo como o nosso Superior Tribunal de Justiça), que julgou que a propaganda focava exclusivamente nas emoções dos consumidores sem adicionar um posicionamento ao debate provocado pela publicidade, e que, por isso, deveria ser proibida por estar fora da competição justa (infringindo uma norma da legislação sobre competição, a Gesetz gegen den Unlauteren Wettbewerb). Em síntese, os magistrados alemães entenderam que a imagem do pato coberto de óleo cruzava essa fronteira e que o banimento à campanha era justificado. Como resultado, a empresa foi obrigada a retirar os cartazes e fotografias veiculadas em revistas na Alemanha (cf. Peer Zumbansen, 'Federal Constitutional Court Rejects Ban on Benetton Shock Ads: Free Expression, Fair Competition and the Opaque Boundaries Between Political Message and Social Moral Standards').

Obviamente, a empresa não se contentou com tal decisão. Impetrou uma Reclamação Constitucional com base no direito de liberdade de expressão e liberdade de imprensa. Em 2000, o Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht, instituição semelhante ao nosso Supremo Tribunal Federal) analisou a constitucionalidade da decisão e entendeu que a decisão da Corte Federal de Justiça que proibiu a veiculação da campanha publicitária da Benetton não sopesou os princípios de competição justa e liberdade de expressão e que, portanto, falhou no teste constitucional. Os juízes entenderam que a liberdade de expressão é um direito fundamental que não foi considerado na argumentação jurídica da decisão prévia. Em suma, os magistrados da Corte Constitucional concluíram que a imagem do pato coberto de óleo veiculava juízos de valor, "com conteúdo capaz de formar opinião, já que direcionariam a preocupação do cidadão para as mazelas do mundo (desastres ambientais), e, dessa forma, estariam protegidas pela cláusula constitucional de livre manifestação do pensamento" (cf. George Marmelstein, 'United Colors of Benetton: a propaganda também está protegida pela liberdade de expressão').

Essa decisão paradigmática de 2000 do Tribunal Constitucional Federal Alemão também modificou outra decisão civil que havia proibido uma segunda campanha publicitária da Benetton, que tratava do tema do AIDS (e que foi alvo da Reclamação Constitucional 1 BvR 1762/95). A polêmica fotografia mostrava uma bunda tatuada com a inscrição "H.I.V. positive".


Grupos organizados da sociedade civil processaram a Benetton por considerarem que a campanha provocava sofrimento entre os portadores do vírus da AIDS e que tal imagem provocaria sérias lesões à dignidade humana. A Corte Federal de Justiça, ao julgar o caso em última instância cível, entendeu que a publicação da campanha violava o gute Sitten (a moral e os bons costumes) requerido pela legislação da competição justa (a já citada Gesetz gegen den Unlauteren Wettbewerb). Ao mostrar pessoas infectadas com o vírus da AIDS como estampadas, estigmatizadas e excluídas da sociedade, a Corte explicou, a campanha provocava ilegalmente pena entre os consumidores e explorava esse sentimento para fins comerciais. Ainda, a campanha também provocava sofrimento aos portadores do vírus da AIDS.

Em 2000, e posteriormente em 2003 (BVerfG 1 BvR 426/02), o Tribunal Constitucional Federal considerou que a campanha publicitária estava inserida dentro do campo de proteção (Schutzbereich) da liberdade de imprensa, garantida pelo art. 5, I da Lei Fundamental ("Todos têm o direito de livremente expressar e disseminar sua opinião através da fala, escrita e imagens (...) A liberdade de impresa é garantida"). Para os magistrados, há uma mensagem crítica em tais campanhas chocantes, o que é protegido pelo direito fundamental de liberdade de expressão. O acórdão diz: "A proteção do Art. 5 I 1 GG – aqui colocada na liberdade de imprensa – alcança também expressões comerciais, assim como a pura publicidade econômica, que tenham um conteúdo axiológico constitutivo de opinião pública (cf. BVerfGE 71, 162 [175]). Desde que numa foto venha à tona uma expressão do pensamento – uma posição, um juízo de valor ou uma certa ideologia –, também esta fará parte da área de proteção do Art. 5 I 1 GG". Fica claro que para a corte constitucional alemã, não há que se falar em desrespeito à dignidade quado a mensagem veiculada em campanha publicitária aborda os problemas da sociedade, estimulando a livre interpretação por parte daqueles que visualizam a provocativa imagem (cf. Craig Smith, 'More Disagreement Over Human Dignity: Federal Constitutional Court’s Most Recent Benetton Advertising Decision').

No Brasil, a Benetton foi condenada pela Justiça do Estado de São Paulo por danos morais em razão de publicidade abusiva que mostrava um paciente de HIV em estágio final, definhando no leito de morte e sendo abraçado pelo pai, não obstante a proteção constitucional à liberdade de expressão e comunicação ("Art. 5º, IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição").


Neste caso, há abusividade da propaganda? A empresa foi longe demais? A liberdade de expressão (e discussão de assuntos polêmicos, como o HIV) gera danos morais dos portadores de tal doença? Uma pessoa portadora do vírus se sentiria ofendida por uma imagem como esta publicada numa larga avenida de sua cidade?

Para os padrões brasileiros, no tocante aos princípios éticos da propaganda, a campanha não pode ser veiculada pois fere o "Código Brasileiro de  Autorregulamentação Publicitária". Porém, será que toda a polêmica criada em torno da campanha não se deve ao fato dela atacar o preconceito?

A discussão do caso HIV é bastante polêmica. Uma intuição preliminar é que a campanha exagera ao valer-se do sofrimento familiar para obter lucro com a venda de roupas. Entretanto, Toscani, o fotógrafo que fez a foto para a Benetton, explica que o propósito da campanha era incitar o debate e que a foto foi feita com um paciente real, David Kirby, com seu consentimento e de sua família: “Os jornalistas, alguns ferozes, apertavam-se em volta dos pais de David Kirby. Perguntaram-lhes: ‘Porque deram permissão para que publicassem a foto do seu filho?’, ‘Não sofrem vendo-a estampada pelas ruas?’. O pai de David deu a seguinte resposta, com a maior dignidade e sem ódio: ‘Enquanto esteve vivo, meu filho lutou para que todo mundo fosse informado sobre a AIDS e sobre os meios de preveni-la. Graças a essa terrível foto e a essa campanha internacional de cartazes, ele pode falar em voz alta. Nós nos servimos do poder e da fama da Benetton, a fim de que o público ficasse sabendo e suscitasse debates em todos os países a respeito dessa doença apavorante, desconhecida, que não se tem a coragem de olhar para frente”.

É importante lembrar que a Benetton foi a primeira empresa a abordar o tema da AIDS na esfera comercial, algo que era um tabu para muitos países no início da década de noventa, tal como o Brasil (basta lembrarmos da árdua luta, marcada por preconceito, de Cazuza, Renato Russo e Betinho).

Quando era aluno de graduação em Direito, apresentei um seminário numa disciplina de Direito do Consumidor (Prof.ª Juliana Fais) sobre propaganda abusiva e abordei justamente esse caso da Benetton (caso Kirby/AIDS). Dirigindo-me aos colegas de sala de aula, fiz as seguintes perguntas: A proteção do consumidor em face à propaganda abusiva é um princípio em nosso ordenamento ou mera regra jurídica? Sendo um princípio, haveria antinomia com relação ao confronto com a liberdade de expressão da empresa em veicular imagens com juízo de valor e que promovam a discussão problemas sociais e tabus? Qual princípio seria aplicável pelo Juiz ao decidir o caso concreto? Haveria ponderação de princípios e aplicabilidade do mais importante, com base na argumentação jurídica de quem decide, tal como proposto por Ronald Dworkin? A liberdade de expressão, tal como sustentado pela Corte Constitucional Alemã, é mais forte que a proteção de eventual dano moral difuso por propaganda abusiva?

A sala ficou em silêncio e eu deixei as questões em aberto. Seria interessante imaginar se essa decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo fosse questionada constitucionalmente por violar a liberdade de expressão. O Supremo Tribunal Federal teria um típico caso de colisão de princípios para ponderar.

O ponto é que há um interessante precedente de uma Corte Constitucional (a Alemã) que garantiu à Benetton o direito de veiculação de campanhas provocativas, como a de hoje que mostra diversas autoridades se beijando. É óbvio que a reação foi imediata e negativa. No Brasil, um país de católicos, choveram comentários criticando a empresa por "brincarem com quem não se deve". O Vaticano, em nota oficial, alertou que “foi um grave desrespeito ao papa, uma ofensa contra os sentimentos dos fieis e um claro exemplo de como uma publicidade pode violar as regras básicas do respeito para chamar atenção por meio de uma provocação”.

Mas a questão é: o homossexualismo ainda não é tabu? Não vivemos numa sociedade que promove o ódio em diversas esferas de convívio social? A Benetton novamente não toca num ponto crucial, que é a cultura do ódio, sentida especialmente pelos homossexuais? E não teria essa campanha também um significado especial em tempos de crise econômica ao mostrar líderes políticos trocando afetos, como o Presidente dos Estados Unidos e o líder da República Democrática da China - países que guerreiam cambialmente e disputam o posto de líder econômico global?

Colocando na balança, acho a provocação da campanha Unhate válida e benéfica, mesmo que tenha uma perversa intenção comercial de gravar nas mentes dos consumidores o nome de uma marca de roupas. A empresa, acima de tudo, quer lucro.

A questão é saber se somos maduros o suficiente para garantir a liberdade de expressão, mesmo que comercial. Afinal, em democracias modernas, este é um direito fundamental que a Benetton pode arguir e exigir.

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