O déficit democrático da escolha dos ministros do STF

É inegável a influência do Supremo Tribunal Federal na vida de todos os brasileiros. O guardião da Constituição tornou-se elemento-chave da democracia contemporânea, decidindo questões complexas que passam pelo crivo da constitucionalidade. Neste modelo de controle judicial, criado justamente para evitar a ditadura da maioria parlamentar sobre grupos minoritários e seus respectivos direitos fundamentais, onze ministros acabam decidindo a validade da aplicação de normas que permeiam as relações sociais de mais de 200 milhões de brasileiros.

O STF tornou-se um importante ator da vida política brasileira. Da Ficha Limpa à Marcha da Maconha, diversos casos que envolviam temas centrais para a dinâmica da democracia brasileira foram discutidos e julgados pelos magistrados da cúpula do Judiciário. Tudo exibido ao vivo pela TV Justiça, para quem quiser acompanhar de casa.

O ativismo constitucional tomou novas proporções no Brasil, ficando claro que o tribunal exerce a  função de "representação argumentativa da sociedade" (expressão do ministro Gilmar Mendes, inspirado pelo teórico alemão Robert Alexy) e que tem a pretensão, além de fazer o controle de constitucionalidade - entre suas principais atribuições está a de julgar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, a argüição de descumprimento de preceito fundamental decorrente da própria Constituição e a extradição solicitada por Estado estrangeiro -, de suprir as deficiência do Legislativo, o que implica na redefinição do conceito de divisão dos poderes em sua vertente montesquiana.

A importância do STF reflete-se também na academia. Além da multiplicação do número de trabalhos acadêmicos destinados a analisar os diversos aspectos da vida e da atuação do Supremo (cf. 'Supremocracia' do Oscar Vieira), há novas instituições dedicadas exclusivamente ao tema. Por exemplo, a Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), uma inovadora instituição de ensino jurídico voltada à análise de caso, tem como objeto de estudo a atuação do Supremo e sua importância no regime democrático brasileiro. As monografias produzidas pelos alunos da EF abordam temas específicos a partir da análise dos votos e argumentos dos ministros do STF.

Ninguém discorda que o STF ocupa hoje uma posição de absoluto destaque na política nacional (transformando-se, como alega Marcos Paulo Veríssimo, "em um órgão que passou, pouco a pouco, a agir declaradamente como uma das mais importantes instâncias políticas da nação"). Os mecanismos pós-emenda constitucional 45/2004 (súmula vinculante e repercussão geral) garantiram autoridade sobre todo o Judiciário brasileiro.

Nos últimos dois anos, o Supremo passou por importantes mudanças na sua composição. Após a morte de Carlos Alberto Menezes Direito em 2009, assumiu sua vaga o advogado do Partido dos Trabalhadores, José Antônio Dias Toffoli. Indicado por Lula, o ministro assumiu no mês de outubro do referido ano, após aprovação na Comissão de Constituição de Justiça e Cidadania do Senado Federal.

A aposentadoria do ministro Eros Grau em agosto de 2010 deixou o STF com um ministro a menos por longos seis meses. Em fevereiro de 2011, a nova presidente Dilma Rouseff nomeou o então ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luiz Fux, que assumiu o cargo no mês seguinte. A sabatina do Senado foi coordenada por José Sarney e resultou em 68 votos a favor e 2 contra (cf. 'Luiz Fux no STF').

A última novidade é a saída da jurista Ellen Gracie Northfleet, a primeira mulher a assumir uma cadeira na mais alta Corte do País, "momento histórico da vida republicana brasileira", como celebra o Relatório de Atividades de 2010. A ministra anunciou sua aposentadoria em agosto deste ano. Desde então, analistas políticos especulam sobre possíveis candidatas que podem ser indicadas por Dilma Rousseff.

A mídia discute o perfil das candidatas e quem está mais alinhada com os interesses do Partido dos Trabalhadores, mas não aborda a questão do déficit democrático do processo de escolha dos ministros. De fato, tudo é feito conforme a Constituição. O chefe do Executivo indica e o Legislativo realiza uma sabatina com o candidato. Se o Senado aprovar, eis que dotado de legitimidade por ser eleito de forma democrática, o novo ministro está livre para assumir o posto da mais alta cúpula do Judiciário do país.

O que resta para o cidadão comum que deseja participar do processo de escolha de um ministro que irá influenciar diretamente na sua vida através de decisões de questões constitucionais? Ao refletir sobre o tema, percebi que tudo o que poderia fazer (como "cidadão de um Estado Democrático de Direito") era enviar um e-mail aos Senadores que representam meu Estado contendo perguntas para serem feitas na tal sabatina. Já que não há um plebiscito ou votação popular, tal como ocorre na Bolívia, devo confiar naqueles que me representam.

Será que serei de fato representado neste procedimento de escolha de uma nova ministra? O Brasil não vive uma verdadeira crise de legitimidade representativa na esfera do Legislativo? Isso não tem peso ao avaliarmos o procedimento de escolha de um ministro? E mais, o desenho institucional posto pela Constituição Federal não trazia uma "visão de Supremo Tribunal Federal" de 1988? E não é amplamente discutido que o STF tem agora uma "nova cara", uma nova função como ator político? Os ministros são apenas bouche de la loi?

Essas perguntas devem ser formuladas por toda a população, mas, em especial, devem ser feitas pela comunidade jurídica, que detém o conhecimento sobre a dinâmica política brasileira. O que nós sabemos sobre as candidatas (ou candidatos) à vaga de Ellen Gracie? Não há uma forma de garantir a ampla divulgação do histórico dos atores que podem ocupar tal importante cargo do Supremo Tribunal Federal e instrumentalizar mecanismos de participação on-line, que garantam maior legitimidade democrática procedimental?

Creio que na época da Constituinte pouco se sonhava sobre as possibilidades de comunicação em tempo real proporcionadas pela, agora popular, internet. Há um novo campo do possível. Falta imaginação institucional e esforço político no sentido de promover instrumentos de participação no processo de indicação e votação de um cargo público tão importante como o de um ministro da Corte Constitucional brasileira. Perderíamos em eficiência (afinal, uma indicação planejada pelo governo e executada com arranjos políticos baseados em trocas tem alta probabilidade de ser aprovada), mas ganharíamos em legitimidade (imagine um cenário em que a população tem a chance de conhecer o candidato e elaborar a pauta de perguntas que será realizada pelo Senado). No verdadeiro Estado Democrático de Direito - substancial, não apenas nominativo -, o segundo elemento tem mais valor.

Essas questões foram levantas por uma colega de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a Flávia Annenberg. Ela escreveu junto com Oscar Vilhena Vieira, diretor da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas-São Paulo, um brilhante artigo sobre a transparência na escolha de novos ministros do Supremo Tribunal Federal. O texto foi publicado no site do jornal Estadão neste sábado. Faço questão de reproduzi-lo aqui.

A tese de Annenberg e Vieira é incontestável: se o Supremo tem ocupado novos espaços no cenário político-institucional brasileiro, não faz sentido que a escolha de seus integrantes continue a seguir os mesmos ritos do passado. Outros países já superaram a dinâmica simplista de indicação pelo Executivo e aprovação pelo Legislativo. Mecanismos mais sofisticados podem ser implementados no país. Basta olhar a experiência de outras nações. A jovem democracia brasileira tem muito a ganhar.


Transparência na escolha de novos ministros do STF
Oscar Vilhena Vieira e Flávia Annenberg, coluna Opinião do jornal Estado de São Paulo.

A nomeação do próximo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) é assunto da maior importância. A ministra Ellen Gracie aposentou-se no início de agosto. Há quase três meses, portanto, a sociedade aguarda, ansiosa, a indicação de seu sucessor – ou sucessora, de preferência. No procedimento brasileiro, a nomeação dos ministros pelo presidente da República se dá após a aprovação por maioria absoluta do Senado Federal. Nas duas últimas vagas preenchidas no Supremo, uma pelo ministro Dias Toffoli e outra pelo ministro Luiz Fux, o tempo entre a publicação da indicação no Diário Oficial e sua aprovação pelo Senado foi de uma semana. Já entre a aprovação pelo Senado e a nomeação presidencial o tempo foi de dois dias. É muito pouco para que a sociedade tome conhecimento dos antecedentes do candidato e de sua visão do Direito e do mundo e construa uma opinião madura a respeito.

O STF exerce hoje um papel peculiar quando comparado não apenas com outros tribunais constitucionais, mas também com o seu próprio passado. Em 1988, quando os constituintes desenharam a arquitetura do Supremo, o tribunal julgou 16.313 processos. Hoje, os dados mais atualizados mostram que o STF decidiu, em 2010, 103.869 casos. Além disso, as temáticas enfrentadas se diversificaram e ganharam relevo com o passar do tempo – de direitos fundamentais, como aborto e ações afirmativas, a reforma política, incluindo cláusula de barreira e fidelidade partidária. Recentemente o tribunal declarou, por unanimidade, a constitucionalidade da união homoafetiva, decisão que há muito se esperava do Congresso Nacional. Da mesma forma, supriu omissão do legislador quanto ao direito de greve dos funcionários públicos.

Com a instituição do efeito vinculante, das súmulas vinculantes e da repercussão geral, o Supremo ampliou a sua autoridade sobre todo o Judiciário brasileiro, bem como sobre os Poderes Legislativo e Executivo, dada a amplitude com que pode confirmar ou rever os atos – e omissões – dos Poderes representativos. E num sistema democrático constitucional como o nosso, nenhum Poder deve ficar imune a controles de natureza social.

Considerando a importância de cada integrante do STF – não apenas pelo fato de que as decisões da Corte se dão pelo somatório dos votos individuais, mas também pela enorme quantidade de decisões monocráticas tomadas todos os dias -, é fundamental que as nomeações dos ministros sejam, de alguma forma, observadas mais de perto pela sociedade. Isso não significa propor um controle de ordem eleitoral, mas explorar alternativas para tornar o procedimento mais transparente e mais aberto à participação da sociedade e de suas organizações. Não se propõe, aqui, uma supressão das competências constitucionais conferidas à Presidência da República e ao Senado para a escolha dos ministros do Supremo, mas uma ampliação da transparência desse processo.

Modelos adotados em outros países poderiam inspirar o Brasil. Em regimes parlamentaristas, a participação do Legislativo é naturalmente mais intensa na nomeação dos membros das Cortes constitucionais.

No modelo norte-americano, que nos inspirou, as sabatinas dos candidatos à Suprema Corte são rigorosíssimas, envolvendo audiências públicas no Senado preparadas com o apoio da academia e da sociedade civil.

A Argentina, pós-regime militar, estabeleceu um modelo de escolha dos ministros da Suprema Corte que merece a nossa atenção. O início do processo ocorre com a necessária publicação, no prazo máximo de 30 dias contados da vacância, no Diário Oficial, na internet e em pelo menos dois jornais de grande circulação, do nome e dos antecedentes dos candidatos que estão sendo considerados pelo Poder Executivo para a vaga. A sociedade civil – incluindo organizações não governamentais, acadêmicos e associações profissionais – tem, assim, a oportunidade de enviar observações fundamentadas a respeito dos candidatos. Depois, no Senado, uma ampla divulgação também precede a audiência pública, abrindo-se a possibilidade de que os cidadãos enviem perguntas. Para além do procedimento, a legislação argentina também impõe que as nomeações atentem para diversidades regionais, equilíbrio de gênero e especialidade temática.

Se o Supremo tem ocupado novos espaços no cenário político-institucional brasileiro, não faz sentido que a escolha de seus integrantes continue a seguir os mesmos ritos do passado. Mudanças institucionais importantes ocorreram com a reforma do Judiciário, porém o mecanismo de nomeação de ministros ainda não sofreu nenhuma alteração. A penúltima vaga aberta no STF demorou aproximadamente seis meses para ser ocupada – demora excessiva, que prejudicou até o julgamento da Lei da Ficha Limpa. A ministra Ellen Gracie deixou o tribunal há mais de dois meses e não se sabe em quanto tempo a presidente indicará um novo nome. No ano que vem, duas vagas deverão ser preenchidas com a aposentadoria dos ministros Ayres Britto e Cezar Peluso.

Temos hoje o privilégio de contar com inúmeras candidatas qualificadas à vaga da ministra Ellen Gracie. Diversos setores da sociedade brasileira têm aproveitado o intervalo para fazer sugestões ao Ministério da Justiça e à Presidência da República de candidatos de sua preferência, nem sempre da maneira mais republicana. A reivindicação mais urgente que um grupo de organizações da sociedade civil tem feito, no entanto, é pela criação de um processo de nomeação mais aberto e transparente. Algo central à democracia brasileira hoje e em plena conformidade com o ethos da Constituição de 1988.

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