Internet e proteção à privacidade

A "onda principiológica" no direito brasileiro está realmente forte. Sabia que existe uma norma jurídica que determina os princípios para governança e uso da internet no Brasil? Pois é. É uma resolução de 2009 de um órgão que eu aposto que você não conhece, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), criado pela Portaria Interministerial nº 147/1995 (e modificado pelo Decreto Presidencial nº 4.829/2003) para "coordenar e integrar todas as iniciativas de serviços Internet no país, promovendo a qualidade técnica, a inovação e a disseminação dos serviços ofertados".

A retórica é comovente. O primeiro princípio, por exemplo, Liberdade, privacidade e direitos humanos, implica que "o uso da Internet deve guiar-se pelos princípios de liberdade de expressão, de privacidade do indivíduo e de respeito aos direitos humanos, reconhecendo-os como fundamentais para a preservação de uma sociedade justa e democrática".

O esforço em estabelecer diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da Internet no Brasil é elogioso, mas também insuficiente. Afinal, não estaria o Facebook - rede social utilizada por mais de 21 milhões de brasileiros - infringindo a privacidade do indivíduo ao permitir que o usuário seja rastreado mesmo quando não logado ao site através da utilização de cookies permanentes que permitem o cruzamento de dados (cf. 'Facebook is Lying but Nobody is Caring')? De que adiantam os princípios se não há um rigoroso controle e estipulação dos limites da utilização de dados pessoais por parte de companhias privadas que oferecem serviços de comunicação on-line?

São problemas que precisam ser resolvidos. Infelizmente, o direito tem não acompanhado as mudanças  tecnológicas de nossa sociedade pós-industrial. Parafraseando José Eduardo Faria, o ritmo de passada do direito é mais lento do que o das mudanças da sociedade de informação, o que não permite um acoplamento estrutural entre os dois. Por outro lado, há um discurso ressoante de que o direito não deve penetrar no mundo virtual, pois não há necessidade de regulamentação deste espaço inter-conexão. Será que a normatização das práticas realizadas on-line teriam efeito prejudicial para a relativa liberdade conquistada com a revolução virtual? Ou pode o direito ser utilizado a nosso favor, protegendo a grande massa consumidora de serviços? Deveríamos pensar num marco regulatório que impusesse limites ao uso de dados pessoais por grandes corporações? Mas como pensar em produção normativa estatal se as trocas de dados ocorrem num espaço não-territorial? Quem faria esse controle? E mais: teria esse órgão capacidade tecnológica para realizar esse suposto controle das novas regras do jogo tendo em mente que há cada mês surgem novas linguagens informáticas e técnicas de utilização de informação virtual num campo de extrema competição inovativa?

O princípio da liberdade de expressão parece impotente frente a tantas aporias. Talvez o primeiro passo seja esclarecer as questões para daí sim procurar respostas e soluções normativas. A atribuição do inciso IV do artigo 1º do decreto que modificou o Comitê Gestor da Internet em 2003 parece coerente: "promover estudos e recomendar procedimentos, normas e padrões técnicos e operacionais, para a segurança das redes e serviços de Internet, bem assim para a sua crescente e adequada utilização pela sociedade".

É preciso pensar coletivamente sobre o problema. Aliás, é isso que tem feito o CGI desde o ano passado, promovendo o Seminário de Proteção à Privacidade e aos Dados Pessoais e colocando para debate, junto ao Ministério de Justiça, um projeto lei sobre proteção dos dados pessoais (qualquer informação relativa a uma pessoa identificada ou identificável, direta ou indiretamente, incluindo todo endereço ou número de identificação que permita a individualização precisa do sujeito) na internet. Os 48 artigos do projeto de lei forma discutidos abertamente durante o primeiro semestre deste ano.

Em outubro, o CGI, em parceria com a Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, irá promover mais uma edição do Seminário de Proteção à Privacidade e aos Dados Pessoais. Eis a justificação para o evento, o que retoma algumas das reflexões feitas acima: "O uso intensivo das Tecnologias da Informação e Comunicação – TICs é um fenômeno que caracteriza a sociedade atual. Esse uso tem diversas implicações sociais, econômicas, jurídicas e técnicas. A proteção dos dados pessoais e as questões de privacidade na Sociedade da Informação é um assunto que evidentemente exige atenção especial. Os meios de comunicação eletrônica em geral e a Internet em especial mudam as relações humanas: eles liberam a pessoa para atuar, interagir e se desenvolver. Viabilizam-se também a produção de conteúdo pelo usuário, o uso de plataformas colaborativas, a formação de redes sociais e a digitalização de diversas atividades, entre outros exemplos. A utilização massiva da informática pelo Estado, pelas empresas e pelos particulares amplifica os riscos para a as liberdades individuais, especialmente dado que a circulação da informação aumentou de maneira extraordinária nos últimos anos. Esse contexto põe uma série de desafios, em especial ao Brasil. A ausência atual de marco legal e político das novas tecnologias é um fator de incerteza para a proteção do cidadão e para o desenvolvimento do país. Nesse sentido, a promoção do debate é fundamental para a melhor compreensão sobre a proteção de dados e sua abrangência, sobre como proteger o cidadão, sobre os benefícios e riscos das novas tecnologias e aplicações e, finalmente, sobre que rumo tomar na regulação de um tema que é evidentemente globalizado".

Como relata a Agência de Notícias da FAPESP, o evento reunirá especialistas de diversos segmentos para abordar os desafios tecnológicos na proteção dos dados pessoais e de seu uso, em diversas áreas que lidam com as informações dos usuários. Entre os palestrantres previstos estão Yves Poullet, fundador e diretor do Centro de Pesquisas em Direito e Informática e reitor da Universidade de Namur, na Bélgica, Marie Georges, assessora do Conselho Europeu, que trata do processo de revisão da Convenção 108 sobre privacidade (modelo europeu de proteção dos dados, referência para muitos países da América Latina), e Harlan Yu, pesquisador da Universidade Princeton e consultor no processo de formação legislativa do modelo de privacidade dos Estados Unidos. O evento é gratuito e acontecerá nos dias 13 e 14 de outubro no Expo Center Norte. As inscrições podem ser feitas aqui.

É preciso identificar e avaliar os desafios colocados pelas novas tecnologias que concernem à proteção da privacidade e à proteção dos dados pessoais. O futuro é incerto. O que é fato é que os riscos para liberdade humana são grandes e que é preciso utilizar do aparato jurídico de forma garantista e protetiva. Princípios não bastam, é preciso compreender a complexidade das relações virtuais e buscar formas de evitar o abuso de determinados grupos a outros. Quem sabe no futuro tenhamos um verdadeiro contrato social para a convivência mútua pacífica, estipulando de forma consensual os limites da conduta humana operacionalizada por máquinas num ambiente não-pessoal. Até lá, há um amplo campo de poder em disputa.

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