Sousa Santos e a crise portuguesa


Portugal está em crise, uma crise econômica séria. Se fosse necessário - a título de entendimento básico - resumir em poucas linhas o que está acontecendo com nossos antigos colonizadores, poderia dizer o seguinte sobre o país. Em primeiro lugar, diferentemente de outros países, não houve qualquer estouro de "bolha", tal como ocorreu na Grécia. O que houve, segundo a opinião dos analistas, foi um processo gradual de perda de competitividade, com o aumento dos salários e redução das tarifas de exportações de baixo valor da Ásia para a Europa. O problema português é a competitividade da sua economia, por estar inserida numa moeda excessivamente forte. 

Em segundo lugar, os gastos do governo têm sido relativamente altos, devido em parte a uma sucessão de projetos caros, tendo em vista que Portugal almejava alcançar um patamar de maior competição com outros países da Zona do Euro. Assim, quando estourou a crise financeira global, Portugal passou a enfrentar uma estrondosa dívida pública, que ficou cada vez mais difícil de ser financiada.

Nesse cenário pós-crise (2008), o governo lusitano passou a ter crescentes dificuldades para administrar a sua dívida - com o aumento das taxas de juros que é obrigado a pagar - devido às preocupações de investidores de que o país será incapaz de pagar seus empréstimos. O descrédito piorou a situação. Como solução, em 2010, o Primeiro-Ministro José Sócrates propôs um plano de austeridade para diminuir em metade o déficit público através de uma série de aumentos de impostos e cortes de salário para servidores públicos. Junto ao plano, elaborado em conformidade com os padrões do Fundo Monetário Internacional, pediu ajuda aos órgãos financeiros europeus. Entretanto, na noite do 22 de Março de 2011, os deputados da Assembleia da República rejeitaram o projeto de lei proposto por Sócrates no combate à recessão econômica. Na manhã do dia seguinte, José Sócrates apresentou pedido de demissão ao cargo do Primeiro-Ministro, permanecendo interinamente até 5 de Junho. Por enquanto, o governo provisório alega (corretamente) que não tem autoridade para negociar um pacote de ajuda financeira - que implicará em mudanças sérias para toda a nação.

A questão mais debatida em Portugal é: precisamos de ajuda?

Para o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, Portugal precisa sim de ajuda, mas não da União Europeia. É possível uma parceria com Brasil e China para recuperar a economia do país. Além disso, é necessário que os termos da crise sejam redefinidos de modo a libertar e credibilizar a possibilidade de resistência, o que implica luta social e política.

Fica a leitura de dois textos de Sousa Santos sobre o cenário português. Neles, o sociólogo da Universidade de Coimbra oferece possíveis caminhos para a ação econômica e para a mobilização política em Portugal. O primeiro texto ("Portugal precisa de ajuda") foi publicado há dois meses na Folha de São Paulo. O segundo ("O desassossego da oportunidade") foi publicado hoje na Carta Maior.

Portugal precisa de ajuda
Portugal precisa de ajuda, mas não da ajuda que acaba de pedir à União Europeia e ao FMI.

A crise da dívida europeia desabou sobre Portugal de uma maneira violenta, e o país está a ser usado como estudo de caso do que está mal no atual sistema financeiro internacional. Nos últimos meses, Portugal foi vítima do componente mais perverso do sistema de avaliação de riscos: a notação por contágio -definir o risco financeiro atribuído a um país em função daquilo que se passa noutro.

A perversidade consiste em criar dificuldades reais a um país a partir de um risco inventado, que só se torna real depois de declarado. É reconhecido por todos que o problema português não é financeiro, é econômico. Não está, por exemplo, no horizonte a falência dos seus bancos de referência. O problema português é a competitividade da sua economia, por estar inserida numa moeda excessivamente forte. 

Sendo assim, as medidas de austeridade e a intervenção do FMI em nada contribuirão para melhorar a credibilidade financeira e econômica do país. Aliás, é isso o que já se passa com a Grécia. O que neste momento se está a definir como “solução” para a crise que o país atravessa não fará mais que aprofundá-la.
A um brasileiro ou a uma brasileira não soará estranho o seguinte itinerário. A intervenção do FMI começará com declarações solenes de que a situação do país é muito mais grave do que se tem dito.

As medidas impostas serão a privatização do que resta do setor empresarial e financeiro do Estado, a máxima precarização do trabalho, o corte nos serviços e subsídios públicos, o que pode levar, por exemplo, a que o preço dos transportes suba de um dia para o outro para o triplo, despedimentos na função pública, cortes nas pensões e nos salários (a começar pelos subsídios de férias e de Natal, um “privilégio” que os jovens do FMI não entendem) e a transformação do Serviço Nacional de Saúde em residual.

Tudo se fará para obter o “seal of approval” do FMI, que restabelece a confiança dos credores no país. O objetivo não é que pague as dívidas (sabe-se que nunca as pagará), mas antes que vá pagando os juros e se mantenha refém do colete de forças para mostrar ao mundo que o modelo funciona.

Perante o agravamento previsível da crise, como buscar uma saída que restitua aos portugueses a dignidade de existir? Não discuto aqui quem serão os agentes políticos democráticos que tomarão as medidas necessárias.

As medidas são as seguintes. Realizar uma auditoria da dívida externa que permita reduzi-la à sua proporção real, por exemplo, descontando todos os efeitos de rating por contágio de que o país foi vítima nos últimos meses. Resolver as necessidades financeiras de curto prazo contraindo empréstimos, sem as condicionalidades do FMI, com países dispostos a acreditar na capacidade de recuperação do país, tais como a China, o Brasil e Angola. 

Tomar a iniciativa de promover um diálogo entre os países do sul da Europa, depois alargado a toda a União Europeia, no sentido de refundar o projeto europeu, pois o atual está morto. Promover a criação de um mercado de integração regional transcontinental, tendo como base a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) e como carros-chefes Brasil, Angola e Portugal. Usar, como recurso estratégico nessa integração, a requalificação da especialização industrial, em função do extraordinário avanço do país nos últimos anos nos domínios da formação avançada e da investigação científica (hoje 1,7% do PIB e previsivelmente 3% em 2020).

O desassossego da oportunidade
Os desassossegos de Portugal são de longo e médio prazo, e só eles nos ajudam a entender o modo como damos resposta às crises de curto prazo. Durante o século XVIII, os barcos que traziam o ouro do Brasil aportavam no porto de Lisboa, mas seguiam muitas vezes para Inglaterra para que a nossa dívida soberana fosse paga. Quem quiser ver paralelos com o que se passa hoje basta substituir barcos por Internet e Inglaterra por credores sem rosto.

Portugal é de longa data um país semi-periférico ou de desenvolvimento intermédio. No atual sistema mundial é muito difícil sair deste estatuto, quer para cima (promoção a país desenvolvido) quer para baixo (despromoção a país em desenvolvimento). As convulsões ou grandes transformações políticas criam oportunidades e riscos, e os países mudam de estatuto para melhor se aproveitarem as oportunidades e evitarem os riscos. Foi assim que no pós-guerra a Itália foi promovida a país desenvolvido. Portugal, devido ao fascismo e à guerra colonial, desperdiçou essa oportunidade.

O 25 de Abril e a entrada na CEE (Comunidade Econômica Europeia) criaram para Portugal outras oportunidades e trouxeram outros riscos, e mais uma vez não aproveitamos as primeiras e não evitamos os segundos. A tentativa socialista estatizante de 1975 foi um risco enorme; os termos de integração na CEE não acautelaram nem a agricultura e a pesca portuguesas nem as relações históricas com as ex-colônias. Por outro lado, os fundo estruturais e de coesão foram desbaratados no que constitui a história mais secreta da corrupção em Portugal.

O euro, combinado com a abertura da economia europeia ao mercado mundial, foi a última machadada nas aspirações portuguesas, pois tínhamos têxteis e sapatos para vender mas não aviões nem comboios de alta velocidade. Os termos da integração foram-nos sendo mais desfavoráveis, o projecto europeu foi-se desviando das vontades originais e os mercados financeiros aproveitarem-se das brechas criadas na defesa da zona euro para se lançarem na pilhagem em que são peritos, agravando as condições do país muito para além do que pode ser atribuído à nossa incúria ou incompetência.

Vivemos a hora dos grupos dominantes, cujo poder parece demasiado forte para poder ser desafiado. A democracia, que aparentemente controla o seu poder, parece sequestrada por ele. Vivemos um tempo de explosão da precariedade, obscena concentração da riqueza, empobrecimento das maiorias, e incontrolável perda do valor da força de trabalho. E se é verdade que todas as crises são políticas, não é menos verdade que não se politizam por si.

A luta pela definição dos termos da crise é sempre o primeiro momento de politização e o mais adverso para os grupos sociais que mais sofrem com a crise. Os grupos sociais que produzem as crises mantêm em geral, e salvo casos raros de colapso sistêmico, a capacidade de definir a crise de modo a perpetuar os seus interesses durante e depois dela. A crise só deixa de ser destrutiva na medida em que se transforme em oportunidade nova para as classes sociais que mais sofrem com ela. E, para isso, é necessário que os termos da crise sejam redefinidos de modo a libertar e credibilizar a possibilidade de resistência, o que implica luta social e política.

No nosso caso, a possibilidade da redefinição da crise é mais consistente que em outros países. Só por má fé ou derrotismo se pode dizer que a situação da economia justificava os ataques especulativos de que fomos alvo. Basta consultar as estatísticas mais recentes (Fevereiro) do Eurostat relativas à evolução da atividade econômica: no período analisado, Portugal foi um dos países da UE em que mais cresceram as novas encomendas à indústria. Se há país intervencionado que tem legitimidade para exigir a renegociação e a redução da dívida, esse país é Portugal.

Esta legitimidade justifica a luta mas não a faz surgir. Para isso, é necessário que os cidadãos e os partidos inconformados transformem o inconformismo em ação coletiva de desobediência financeira.

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