A brevíssima era Kirchner

Imagine o Brasil com uma taxa de desemprego de 20%, empresas estratégicas e indústrias de base privatizadas (imagine a Petrobras completamente privatizada, por exemplo), dívidas trilionárias, potencial declaração de moratória frente ao FMI e um Presidente populista falastrão e elitista, moldado pela mídia e pelas facções conservadoras do país.

Cenário de guerra?


Pois é. Foi mais ou menos assim que Néstor Kirchner (ex-Presidente falecido hoje) assumiu a presidência da Argentina no ano de 2003. Ele buscou novas saídas para um país em crise, violentado pelas políticas neoliberais (o governo de Carlos Menem havia seguido à risca os dez mandamentos do Consenso de Washington), após três décadas de corrupção e esfacelamento do Estado argentino.

É claro que Kirchner assumiu o país numa situação um pouco mais tranqüila. A situação já estivera muito mais tensa em Buenos Aires, especialmente quando o país vivenciou em 2001 a maior crise econômica de sua história, culminando na renúncia do Presidente De La Rua em razão dos violentos protestos e do "paneláço" da população argentina.

De qualquer forma, Kirchner foi competente o suficiente para reverter a situação de moratória, renegociar a dívida frente ao Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial e reverter o neoliberalismo com medidas intervencionistas na economia.

Javier Vadell, Professor da PUC-Minas explica quais foram os trunfos do governo Kirchner, destacando dois elementos importantíssimos para a Argentina: (i) resolução da moratória através da difícil renegociação da dívida; (ii) integração econômica na América do Sul.

A política exterior menemista foi mais prolongada que o governo Menem. A Aliança manteve as diretrizes principais da política econômica, com a manutenção da conversibilidade e os programas de ajuste e da política externa. Assim, Domingo Cavallo, o "pai da conversibilidade", regressou ao Ministério da Economia na última etapa do breve governo de Fernando de la Rúa. Nesse sentido, Tokatlian (2005a) aponta que as mudanças significativas se dão durante o governo de Néstor Kirchner, tanto em relação à política exterior como na maneira de ver a economia. Essas transformações estão baseadas, segundo o autor, em três realidades:
1) A primeira é a percepção da sociedade e do governo do enorme fracasso que significou a política externa das "relações especiais" com os centros de poder político internacional (Washington) e com os centros de poder financeiro, especificamente o FMI e o Banco Mundial. O Estado argentino, por mais ou menos uma década, foi mostrado ao mundo pelas instituições financeiras e pelos investidores privados como o aluno exemplar do FMI. Contudo, quando atravessava sua pior crise, não obteve ajuda, resgate, apoio ou solidariedade por parte desses centros de poder econômico.
2) O segundo elemento que ajudou a interpretar a mudança refere-se ao fato de que, dada a debilidade do mandato Kirchner, o presidente viu-se obrigado a dar claros sinais de assertividade e de determinação. Além disso, o presidente tem um apelo fortemente pessoal, intempestivo e pouco adepto aos protocolos, o que reforça o caráter personalista do mandato.
3) Um terceiro elemento seria a formação política e as características próprias da geração do presidente. "É um filho da geração dos anos 1970, que tem uma visão marcada por um momento histórico de mudança". Segundo Corigliano (2004), há influência de um passado de peronismo "setentista", de identificação ideológico-simbólica com regimes reformistas de caráter ideológico anti-imperialista. Essa visão "procura resgatar em forma simbólica idéias e gestos reformistas próprios da esquerda peronista na que militaram, em sua juventude, o presidente Kirchner e seu (primeiro) Chanceler Rafael Bielsa" (CORIGLIANO, 2004).


Deste modo, dois aspectos valem a pena destacar do curto período do governo Kirchner. Em primeiro lugar, a resolução da saída da moratória por meio de uma difícil negociação com os credores privados e, em concomitância, com o FMI. A Argentina saiu da incômoda condição de moratória, conseguindo acordos aparentemente mais vantajosos que outros países em desenvolvimento e especialmente que o Brasil na negociação com o FMI. A reestruturação da dívida externa com os credores privados, em 2005, e a saída da situação de moratória (default) foram percebidas como um sucesso por grande parte de população. Isso possibilitou ao presidente Kirchner e ao ex-ministro da Economia Roberto Lavagna reinserir a Argentina na economia internacional. Em janeiro de 2005, o governo argentino apresentou um programa de troca de uma parte da dívida com os credores privados argentinos e estrangeiros. Visando a esse objetivo, o governo emitiu novos bônus para substituir os que não foram pagos. Existiam mais de 150 tipos de bônus em moratória. Deu-se a oportunidade aos credores de escolher entre três novas categorias de bônus, sendo o prazo final, dado pelo governo argentino, em 25 de fevereiro. Depois dessa data, os credores que não aceitassem poderiam recorrer à Justiça.
Em 3 de março de 2005, o ministro Lavagna anunciou que 76,07% dos credores privados, do total de 152 títulos da dívida argentina em moratória, concordaram com a proposta de quitação apresentada pelo governo Kirchner, apesar da perda em torno de 63% e 68% do valor original do bônus. A recuperação do crescimento da economia que tinha começado em 2002, inclusive em situação de moratória com os credores privados internacionais, fortaleceu o ministro Lavagna nas negociações face o FMI e os credores.
Em segundo lugar, as relações com o Brasil foram colocadas como uma prioridade da política externa do governo de transição de Duhalde e do governo de Kirchner. Na região do Cone Sul, os vínculos com o Brasil foram elevados ao status de relações estratégicas, como ferramenta destinada a maximizar a margem de manobra da Argentina em relação aos Estados Unidos e frente à União Européia, especificamente nas negociações comerciais internacionais e dentro da Organização Mundial de Comércio (OMC). Isso implica que a estratégia do governo argentino coloca as políticas de regionalização (fortalecimento do Mercosul) como elemento prioritário, inclusive como base para uma via de desenvolvimento alternativa à via pregoada pelo Consenso de Washington.

Kirchner trouxe de volta a tão desejada estabilidade econômica sem medidas milagrosas e buscou uma maior integração entre os países latino-americanos, um elemento essencial para a nova economia do Século XXI.

Com sua habilidade política, ampliou as relações internacionais com Evo Morales, Hugo Chávez, Lula, e outros líderes latino-americanos.

Ao deixar a Presidência em 2007, tinha um índice de aprovação de mais de 70% - um número nunca antes atingido por um líder nacional na Argentina. Como forma de continuar exercendo sua influência, lançou sua esposa Cristina Kirchner, que hoje é a atual Presidenta do país.

Mas afinal, o que fazia de Kirchner tão popular? Seria ele um gênio da política? O que ele tinha de especial?

A meu ver, nada. Mas era um líder honesto e sabia dialogar. E isso basta nos dias atuais (e está muito em falta!). Numa democracia contemporânea, basta atender ao desejo da maioria de forma honesta e com amplo diálogo.

Kirchner deixou o governo com dignidade. Por isso a Argentina está em luto.

Nos últimos meses, a maior preocupação de Néstor era com relação a UNASUL, a União das Nações Sulamericanas. Kirchner era o Secretário-Geral e estava lutando para que a organização fosse aprovada por todos os Congressos dos Estados-membros, dando início à zona de livre comércio entre os países da América do Sul.

É realmente uma pena que Kirchner tenha morrido. A integração sulamericana perde um grande líder.

Neste vídeo abaixo, gravado no final de Setembro deste ano, Kirchner dá uma palestra na New School of Economics (em Nova Iorque) sobre a proposta da UNASUL e seus objetivos a curto e médio prazo. Vale a pena conferir.

2 comentários:

  1. O Zanatta muito bom texto fiquei mais uma vez com uma raiva imensa da Globo e do Estadão que chegaram a falar que ele era populista e promoveu censura na imprensa

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