O eterno retorno


Meu pai nunca foi um leitor assíduo de romances. Imagino que em meio à correria absurda que sua vida tem sido, os livros não tiveram muita oportunidade de cair em suas mãos e ganhar atenção, em meio à escassez de seu tempo livre. Afinal, enfrentava a batalha de morar sozinho numa cidade nova, Maringá, fazendo o curso de Agronomia na Universidade Estadual de Maringá e trabalhando para se manter vivo durante a segunda metade da décana de 80. Depois, conheceu uma aluna no colégio onde trabalhava como professor de biologia. Iam namorar de bicicleta nas repúblicas da Vila Esperança e após uma dessas transas gostosas feitas em cama de solteiro tiveram um filho, eu. Alguns meses antes do meu nascimento, casaram-se.

Um ano e meio depois veio mais um. Assim, com dois filhos, novas preocupações surgiram, bem como uma oportunidade de trabalhar numa multi nacional, a Dupont, viajando diversas vezes pela semana ao som de The Unforgettable Fire no toca-fitas do carro da empresa para vender sementes e pesticidas para os agricultores do Paraná. Como se vê, as tarefas eram muitas e os livros variavam entre as disciplinas de agronomia, biologia e até as técnicas de marketing e vendas. A maioria dos clássicos literários foi deixada de lado, pela falta de tempo livre.

Entretanto, meus pais sempre tiveram muitos livros nas estantes. Meu pai mesmo sempre comentou dum tal "Clube do Livro" que ele participou, que não sei ao certo o quê nem quando foi. Destes livros de estante que cresci lendo o título, meu pai sempre fez questão de me indicar dois, dizendo que foram as melhores leituras de seu tempo de universidade: O Perfume, do alemão Patrick Susking, e A insustentável leveza do ser, do tcheco Milan Kundera, que sempre me despertou interesse (assinado na contra-capa: Odacir Antonio Zanatta, 1987 em caneta azul).

Aos dezenove anos li A insustentável leveza do ser e fiquei fascinado. É uma prosa incrível, misturando elementos de filosofia, existencialismo, psicologia na análise de seus próprios personagens, além de todo o contexto histórico da "Primavera de Praga", de 1968. O livro entrou pro rol dos meus favoritos desde então.

Antes de viajar para Londres, num dos últimos encontros com uma grande amiga (Bárbara Zanin), em Dezembro de 2008, emprestei o livro e disse: "Você vai adorar esse livro. Mas cuida bem, pois é um dos meu favoritos."

Na Europa, fui para Praga e me imaginei nos cenários lidos através da obra de Kundera. Entretanto, fiquei chateado ao notar que a cidade em nenhuma forma prestava homenagem ao brilhante escritor, sendo que somente Franz Kafka era reverenciado na cidade. Talvez pelo fato de Milan Kundera ter nascido em Brno! Talvez pelo fato do escritor ter entrado na lista negra do Partido Comunista da Tcheco-Eslováquia, após dissidências políticas. Talvez pelo autor ainda estar vivo e pela nossa cultura de homenagear somente os mortos, vide fenômeno Michael Jackson, entre tantos outros. Enfim, Praga praticamente ignora Kundera.

"Praga, numa linda manhã de Janeiro deste ano"

Após três anos da leitura da obra muita coisa se perde, isso é fato. Além disso, a visão de uma obra tão complexa e profunda como tal é completamente diferente ao olhos de um "homem" de vinte e dois anos, comparando com a compreensão de mundo de um "garoto" de dezenove. Portanto, vínhamos cogitando a possibilidade de colocar A insustentável leveza do ser, como uma das obras a serem discutidas no Café com Prosa, que já teve três edições (A Metamorfose, As Intermitências da Morte e O Estrangeiro). Porém, nosso grupo de literatura encontra-se num hiato, considerando que nosso local de encontro não existe mais. Sim, o Café Folie da Anlys fechou.

Mesmo assim, hoje pela manhã passei na biblioteca para pegar uns livros de direito e me ocorreu de emprestar esse livro novamente, já que a senhora Bárbara não me devolveu o livro ainda (isto é uma indireta, Babi).

E engraçado como a leitura do livro muda. Na abertura, na discussão inicial sobre O Peso e a Leveza, Kundera reflete: "O eterno retorno é uma idéia misteriosa de Nietzsche que, com ela, conseguiu dificultar a vida a não poucos filósofos: pensar que, um dia, tudo o que se viveu se há-de repetir outra vez e que essa repetição se há-de repetir ainda uma e outra vez, até ao infinito! Que significado terá este mito insensato?".

Há três anos, não tinha dado importância para essas considerações iniciais que irão permear o livro, pois simplesmente desconhecia Nietzsche. Hoje, após algumas leituras importantes, tenho até uma camiseta que diz: Nietzsche is my co-pilot, comprada na Camden Town Market (uma feira de rua pra lá de punk).

A própria discussão do eterno retorno foi colocada no último Café com Prosa, quando discutíamos "O Estrangeiro". Foram reflexões interessantes e impossíveis de serem transcritas aqui, devido ao contexto que cercava a discussão e a progressão das ideias colocadas em quase uma hora de conversa.

Enfim, acredito que essa releitura será especial. Me sinto mais maduro e, talvez, mais leve. Me encontrarei mais nos detalhes psicológicos dos quatro personagens desta fabulosa história. E quem sabe, após essa leitura e a devolução do livro, entregue o livro para meu pai em Curitiba e diga: "Obrigado".

7 comentários:

  1. Assinado por Odacir e Márcia, em janeiro de 87, mas Rafael, e a diplomacia, meu caro? A apropriação indébita existiu e é fato, só espera a oportunidade pra retornar às mãos do legítimo dono, livro tão significativo e que, na época, me fez pensar mto sobre a vida e suas voltas (assim como deve fazer como todo mundo), o kitsch e sobre como aquele que quer deixar o lugar que vive, não está feliz.
    E do mais, é só mais um livro, mesmo que seu conteúdo intenso e a história de como nasceu pra você, sejam raríssimos.
    Não deixe um livro tornar pesada e insustentável sua relação com qualquer pessoa, quanto mais com uma colega de "tão longa data", e que felizmente, ainda não é senhora.
    Respondendo à altura da inDIRETA descortês, douto colega, a PORRA DO LIVRO ESTÁ NA MINHA ESTANTE, assim como esteve desde as infindas despedidas, muito bem cuidado, ansiando pela devolução,
    visto o incômodo profundo que tem causado.
    and next time be a little more polite, god damn it!

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  2. Porra Zanata. Você escreve muito bem. Parabéns! Conhecia você apenas tocando e cantando umas boas canções, com tua banda. Sobre o livro “A insustentável...”, impossível dizer algo num simples comentário de blog. É do caralho, simplesmente. Coincidência ou não, o meu velho e bom Kundera amarelecido está emprestado também. Mudando de assunto, como faz para participar do Café com Prosa? É um grupo secreto e seleto? Ou é aberto ao público leigo? Um abraço.

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  3. minha edição de "O Perfume" também é do clube do livro. sempre encontro por aí nos sebos, sempre bons títulos.

    um abraço!

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  4. putz.. a primeira coisa q vejo no seu blog é logo sobre o "Eterno Retorno"?
    Bom... vamos lá! Prefiro Borges falando do Eterno Retorno, tema de Nietzsche, mas que provém de Zenão e dos Bastardos Estóicos

    Aí vão algumas citações Borgianas sobre o tema:

    “Escreveu Nietzsche: ‘não ansiar por distantes venturas, favores ou bênçãos, mas viver de modo a que queiramos voltar a viver, e assim por toda a eternidade’”.

    Doutrina dos Ciclos; História da Eternidade.

    “Se os destinos de Edgar Allan Poe, dos wikings, de Judas Iscariotes e de meu leitor secretamente são o mesmo destino – o único destino possível – a história universal é a de um único homem.”

    O Tempo circular; História da Eternidade.

    “Na cosmogonia dos estóicos, Zeus se alimenta do mundo: o universo é consumido ciclicamente pelo fogo que o gerou e ressurge da destruição para repetir uma história idêntica. Novamente se combinam as diferentes partículas seminais, novamente darão forma a pedras, arvores e homens – e até virtudes e dias, já que para os gregos era impossível um nome substantivo sem alguma corporeidade. Novamente cada espada e cada herói, novamente cada minuciosa noite de insônia”.

    A doutrina dos Ciclos; história da eternidade.

    “Escreve Nietzsche, por volta do outono de 1883. ‘esta lenta aranha arrastando-se à luz da lua, e esta mesma luz da lua, e tu e eu cochichando sobre coisas eternas, já não coincidimos no passado? E não voltaremos a percorrer o longo caminho, esse longo e terrível caminho, não voltaremos a percorrê-lo eternamente?’ ”

    A doutrina dos Ciclos; história da Eternidade

    muitos outros contos foram dedicados a este tema: "os Teólogos", o grande "A Morte e a bussola", "Uma nova refutação do tempo" "Deustchie Requiem" "Tlon Uqbar, Orbis Tertius" Algumas variantes do tempo cíclico, outras da conformação do destino, outras da opssibilidade do acaso... mas o Borges não sabe brincar..

    ps- eu tbm fico impressionado com "o eterno Retorno" e já tive a oportunidade de escrever algumas linhas sobre...
    Qualquer dia desses tomamos uma (ou damos uma volta no parque, ou paramos no corredor do forum) pra falar de Zenão, Borges e Kundera! :-)
    Astchorga!

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  5. O Café com Prosa é um grupo aberto! E ainda iremos decidir o novo local e a próxima obra, objeto da discussão.

    Alguma sugestão, pessoal?

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  6. caralho, no começo do post ali do "Marcos" pensei, "caralho, quem é Marcos que cita Borges!?" Era o Astorga. Graaaande Astorga! Grande abraço!

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  7. Odacir Antonio Zanatta3 de novembro de 2009 às 15:46

    Rafa, parabéns, meu filho amado.
    Que justiça seja feita, pois não podemos nunca nos esquecer dos nossos mentores: essa obra, A Insustentável Leveza do Ser, me foi recomendada por um professor do Departamento de psicologia da UEM, em 1985, o Everaldo (in memoriam).
    Foi numa ocasião em que meu grande amigo Luciano ficou sozinho em Maringá, pois seus pais haviam se mudado para outra cidade, e ele foi morar no apartamento do Everaldo, lá nos blocos da Mário C. Urbinati.
    Numa bela tarde em que resolvi visitar o luciano, o Everaldo chegou, conversamos um pouco, e ele nos falou sobre esse livro, que era muito bom.
    Não deu outra, comprei, li e também é uma das obras que mais me marcaram.
    Inclusive, naquela época, eu me sentia o próprio Tomas, o que era ratificado sempre pelo meu amigo Nelson Tenório, que também me vinculava ao personagem.
    O Everaldo morreu de Aids, infelizmente, e a forma pela qual ele morreu não importa, mas aqui vai também uma homenagem a esse grande cara, que com certeza colaborou para que um jovem que nasceu na roça pudesse começar a sair da caverna. E viva Platão!
    Um abração.
    Seu Paizão Odaça.

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